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Lei de Cotas, 10 anos: reflexões e depoimentos na UFSB

  • Escrito por Heleno Rocha Nazário
  • Publicado: Segunda, 29 de Agosto de 2022, 10h51
  • Última atualização em Segunda, 29 de Agosto de 2022, 13h53
  • Acessos: 2280

Promulgada em 29 de agosto de 2012, a Lei Federal nº 12.711/2012 ficou conhecida como “Lei de Cotas”. O documento estabelece a destinação de no mínimo 50% das vagas em instituições federais de educação superior para estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas. Além disso, as vagas destinadas a oriundos do ensino médio em redes públicas de educação devem ser distribuídas entre estudantes de baixa renda (igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita), autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência, nos termos da lei federal nº 13.409/2016, que retificou alguns pontos da legislação original.

Como política afirmativa e reparatória, a Lei de Cotas gera ainda hoje acalorados debates, dentro e fora da academia. Em 2022, o prazo para a revisão da lei se encerrou sem que tenha havido uma avaliação adequada por parte do Ministério da Educação. Enquanto algumas correntes políticas pretendem invalidar a Lei de Cotas, outras propõem novos prazos e esquemas avaliativos definidos para medir o quanto que a política afirmativa ainda é necessária e em que pontos ela demanda melhorias.

A Universidade Federal do Sul da Bahia foi criada quase um ano depois. Já com essa preocupação em mente, a instituição estabeleceu um percentual de vagas destinadas às políticas afirmativas acima do recomendado pela lei 12.711/2012. Posteriormente, o Conselho Universitário aprovou resolução que amplia para 75% a reserva de vagas para as diferentes modalidades de cotas, procurando se adaptar à realidade percebida na região: a maioria dos jovens estuda integralmente em escolas da rede pública e vêm de famílias de baixa renda. Em sua jovem trajetória, a instituição foi acolhendo demandas da população do território e criou políticas de cotas para povos ciganos, pessoas transsexuais, travestis e transgêneros e pessoas em situação de privação de liberdade ou refugiados. A versão mais atual das políticas aplicadas na UFSB está descrita na Resolução Consuni nº 12/2021.

 

Grande transformação nas universidades públicas

IMG 20190331 162129484Para a pesquisadora e docente Lidyane Maria Ferreira de Souza, a Lei de Cotas promoveu em poucos anos a maior transformação possível nas universidades públicas brasileiras. "Quando a universidade se torna acessível a pessoas que dela foram sistematicamente excluídas, toda a Universidade é provocada a se transformar em termos de status atribuído à elite acadêmica em função de seu distanciamento da realidade social, de necessidade de políticas de permanência e, entre outros, de referencial epistemológico", pondera a cientista. O percurso nesses dez anos permitiu o ganho de experiência de profissionais e instituições da educação superior.

Para a professora Lidyane, "durante estes anos, os movimentos sociais e os setores das universidades interessados em efetivar a lei desenvolveram uma inteligência que envolveu, por exemplo, a articulação de argumentos jurídicos em defesa de sua aplicação e expansão, apresentados em ações judiciais que buscavam tornar a lei inefetiva, e a elaboração e institucionalização de instrumentos para lidar com as fraudes, desde a documentação apresentada no momento da matrícula até as comissões de verificação e de julgamento de denúncias".

Olhando para a UFSB, uma das novíssimas instituições federais de ensino superior, a pesquisadora destaca alguns pontos da aplicação da Lei de Cotas: "Me parece que a Lei de Cotas na UFSB funciona permanentemente como um centro propulsor para a ampliação das ações afirmativas na Universidade. A UFSB é uma universidade recente que expandiu o mecanismo das cotas a outras categorias de estudantes cujas presenças na universidade não eram naturalizadas, e especificou cotas considerando diversidades intra-grupos, como acontece na previsão de vagas para membros de povos indígenas aldeados, de comunidades remanescentes de quilombos ou comunidades identitárias tradicionais e de origem cigana, além de vagas para pessoas transexuais, travestis e transgêneros, pessoas em situação de privação de liberdade ou egressas do sistema prisional ou refugiadas".

Essa inclusão e o aprendizado dentro da gestão se materializaram em estruturas pensadas para o aperfeiçoamento e a justiça na aplicação das ações afirmativas e isso permite esperar mais avanços no acesso à educação via UFSB, explica a professora Lidyane: "A UFSB conta ainda com um Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas, o que demonstra maturidade e compromisso institucional para com o aprimoramento da política. Ademais, recentemente, a Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação deu início ao processo de construção da política de ações afirmativas também na pós-graduação, o que envolve a previsão de cotas em todos os cursos de pós-graduação da UFSB. Poucas universidades brasileiras contam com uma política do tipo e eu espero que a comunidade da UFSB avance no projeto de democratização da universidade".

 

Ações afirmativas no DNA da instituição

A reitora da UFSB, professora Joana Angélica Guimarães da Luz, enfatiza que a Lei de Cotas advém de uma discussão que vinha se intensificando em relação ao acesso ao ensino superior. Ela relembra a própria trajetória como um dos poucos casos em que pessoas negras e de baixa renda conseguiam reunir condições materiais para desenvolver seus potenciais. Para a gestora, docente e cientista, a Lei de Cotas trouxe um avanço: muitas pessoas que antes não pensavam no ensino superior como um caminho viável passaram a ter a universidade em seu horizonte: "Esse movimento de abrir as portas e abrir a perspectiva das pessoas de pensar nas costas é importante. Outro aspecto é a própria questão racial: a gente fala muito da questão da autodeclaração. Eu venho de um tempo em que você dizer que era negro não era positivo, todo mundo se dizia 'moreno', porque ser negro nunca foi uma coisa boa. Negros eram sempre tidos como pessoas desprovidas de inteligência e de todas as qualidades que são consideradas valores importantes na sociedade. Então isso também é um ganho, as pessoas começaram a dizer 'eu sou negro', a se declarar negro, a assumir a sua condição racial". A reitora Joana avalia que o impacto da entrada desse público mais vulnerável mudou o perfil das instituições federais de ensino superior, agregando novas e melhores perspectivas para toda uma camada da população brasileira que pensava não ter direito a participar da vida acadêmica.

A primeira reitora negra eleita e reeleita na história das IFES avalia que a discussão sobre a revisão e renovação da Lei de Cotas deve levar alguns pontos em consideração, que ela apresentou em entrevistas e contatos com veículos de comunicação. "Primeiro, consideramos dez anos um tempo muito curto para se pensar uma mudança significativa. É claro que a gente precisa de algumas mudanças no sentido de avançar, por exemplo, instituir na Lei de Cotas a questão da pós-graduação, instituir outros mecanismos e ampliar esse acesso", pontua a professora Joana. Outro ponto é que não houve um acompanhamento aprofundado que vá além do acesso à graduação e veja os resultados para além da formatura em âmbito federal. "A gente diz que tem muita gente que entrou na universidade, mas desse total que entrou na universidade, quantos de fato se graduaram? Quantos conseguiram entrar na pós-graduação? Quantos conseguiram empregos de maior destaque, quantos estão em posição de destaque hoje nos empregos seja na própria academia? Se a gente fosse dar um exemplo a partir das universidades federais, nós temos hoje 69 universidades federais e cerca de meia dúzia de reitores negros. Então a gente percebe que ainda há um espaço a ser ocupado", considera a reitora.

24082022 reitora Joana Angélica UFSB

A inclusão das políticas afirmativas no âmbito da pós-graduação é outra melhoria necessária, na visão da professora Joana: "Muitas vezes a gente fala que não é apenas a questão do apoio no sentido de ampliar o acesso. Tem muita gente que se forma e tem dificuldades para conseguir emprego, para fazer uma pós-graduação. A bolsa de pós-graduação hoje é de um valor muito baixo, muitas pessoas têm família que depende daquele dinheiro para se manter, se sustentar e não consegue às vezes entrar na universidade ou fazer uma pós-graduação, mestrado, doutorado. Isso limita o número de pessoas que tem na sua realidade socioeconômica a condição de fazer esses cursos de mestrado e doutorado. Quando se fala 'mas a pessoa já está formada, não precisa mais de apoio', na verdade ela precisa, porque a  gente tem esse contingente do nosso público que já vem de uma situação vulnerável", defende a reitora, ao falar dos graduados que passam pela situação de escolher entre a pós-graduação e uma renda imediata - uma não-escolha, na verdade.

A professora Joana Angélica explica que a UFSB já incorporou desde a concepção o debate sobre as ações afirmativas. "Quando a gente tinha quase um ano da Lei de Cotas a lei de criação da UFSB foi sancionada, em junho de 2013. Estávamos exatamente no início, e naquele momento a regra era de que as universidades deveriam reservar 50% das suas vagas para cotistas, para pessoas egressas de escola pública, e dentro desse contingente é que se fazem as demais reserva. Nós já começamos com a nossa reserva de 55%, exatamente porque entendíamos que estávamos chegando em um território que tem uma grande maioria de egressos de escola pública. Aqui na região 78% dos estudantes são egressos de escola pública. No entorno da UFSB, daqui [sul] até o Extremo-Sul da Bahia, grande parte dos municípios não têm escolas privadas de ensino médio. Então fazia todo sentido para nós ter uma reserva de cotas que refletisse a realidade dos estudantes egressos do ensino médio da região. Começamos com 55% e mudamos depois para 75%", conta a reitora. Ela reforça que é muito bom que a UFSB continue recebendo estudantes de outras partes do Brasil via Sisu, além de servidores, no entanto a instituição está em busca de atender as demandas do território, empobrecido com a crise do cacau, e de públicos que historicamente eram desatendidos no acesso ao ensino superior, como indígenas, quilombolas, pessoas trans, povos ciganos e pessoas em situação de privação de liberdade e refugiados. "Fomos ampliando [as reservas] com a compreensão de atender também essas outras pessoas que nunca tiveram oportunidade na universidade ou que estavam subrepresentados".

Ao falar da sua trajetória e de como para muitas pessoas de baixa renda os bancos acadêmicos ainda parecem algo distante, a reitora Joana menciona a importância de ir espalhando pelas famílias a ideia do ensino superior como forma de ascender. Da sua juventude, Joana lembra das vezes em que outras pessoas diziam que "universidade não era para gente pobre", da escassez de instituições no interior e de mecanismos que apoiassem estudantes pobres para a continuidade do percurso acadêmico. Ainda com as melhorias ocorridas de lá para cá, como as pró-reitorias dedicadas à assistência estudantil, as políticas voltadas para apoiar estudantes de baixa renda na graduação e as reservas de cotas, sociais e raciais, a professora Joana considera que há muito a ser feito e que as ações precisam ser aperfeiçoadas para democratizar o acesso aos bancos universitários e reparar os danos estruturais na sociedade.

Um exemplo é a questão da autodeclaração racial, bastante defendida no começo da aplicação da lei de cotas, e hoje complementada com as bancas de heteroidentificação: quando essa ação afirmativa começou a ser defendida, a autodeclaração era também um estímulo à recuperação da autoestima da pessoa negra. Com a aplicação da lei, aos poucos as brechas foram sendo exploradas e casos de fraudes apareceram no debate público, ainda que representando um pequeno percentual do total de ingressos. "Por conta dos processos judiciais, nós começamos a avançar no sentido de estabelecer as bancas de heteroidentificação para evitar as fraudes. A gente têm melhorado a compreensão e hoje temos muitas pessoas que se dedicam a refletir sobre isso. A grande maioria das universidades já instituiu as bancas de heteroidentificação para fazer essa avaliação se de fato a pessoa que se autodeclara negra de fato faz jus àquela cota, destinada àquele público".

A professora Joana reforça a necessidade de continuidade e sistematização do processo avaliativo da Lei de Cotas e afirma que as vantagens compensam em muito os contratempos encontrados nesses dez anos de vigência. "Eu acho que a gente vai para levar um bom tempo discutindo e escrevendo e falando sobre isso porque é um processo. Se a gente considerar o recorte das pessoas negras, por exemplo, houve 300 anos de escravidão e depois a abolição da escravatura, que é questionável a forma como ela foi implantada, sem absolutamente nenhuma política pública voltada para essas pessoas que eram escravos e que de repente se viram no meio da rua, sem absolutamente nada, e que nunca tiveram políticas públicas voltadas para elas. Então, dez anos é muito pouco tempo para dar conta de todo esse histórico", justifica a reitora Joana Angélica.

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