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Reitora fala sobre as ideias para a gestão: “O que tenho em mente é que haja ampla participação de todos”

  • Escrito por Heleno Rocha Nazário
  • Publicado: Sexta, 06 de Julho de 2018, 23h04
  • Última atualização em Sexta, 06 de Julho de 2018, 23h48
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Promover a participação da comunidade e a segurança institucional. Esses são dois dos objetivos definidos pela reitora recém-empossada da Universidade Federal do Sul da Bahia, professora Joana Angélica Guimarães da Luz, em entrevista concedida à Assessoria de Comunicação Social.

As oportunidades para planejar e realizar essas metas se aproximam, com a preparação do Congresso da UFSB, que deve servir de base para o início da construção do Plano de Desenvolvimento Institucional. Joana afirma que esses momentos são necessários para movimentar a comunidade no sentido do diálogo positivo para mostrar que é possível manter as diretrizes da universidade melhorando as condições de trabalho.

 


 

ACS: O que significa, para a senhora, que é mulher, negra, do Sul da Bahia, que tem uma trajetória de vida nesse território, chegar à reitoria da UFSB eleita pela comunidade?

 

Reitora Joana Angélica Guimarães da Luz:  Sempre tenho a sensação de que andei muito para chegar onde cheguei e que as dificuldades não foram pequenas, foram muito grandes. Fico às vezes refletindo em como a minha vida poderia ter sido diferente, pensando no que vivi aqui na região, quando criança, até o início da minha adolescência. Principalmente se considerar que tenho uma família muito, muito grande. Eu sou das mais novas da família da minha mãe: na família do meu pai, sou a mais velha, e fui a primeira pessoa dessa família imensa a entrar em uma universidade. Claro que hoje tenho outros primos que cursaram faculdade, mas fui a primeira dessa geração de primos por parte de minha mãe. Isso tem um significado não no sentido de que foi algo do tipo “ah, fui uma pessoa que batalhei muito e por isso consegui”. Óbvio que me empenhei muito na vida e sempre tive muito apoio dos meus pais. Para eles, não se admitia nada que não fosse estudar lá em casa, porque não tinha alternativa de vida para a gente a não ser através do estudo. Se não, a gente iria viver da mesma forma que eles viveram. E eles conseguiram fazer isso com os seis filhos; com todas as dificuldades que nós tivemos, os seis filhos se formaram. Dos seis, três são doutores, com doutorado no exterior, inclusive. Isso foi uma grande vitória para a gente, por demonstrar não só o nosso empenho individual, de batalhar, de estudar, de se dedicar, mas uma série de fatores, como a sorte, apoio familiar. Meus pais foram essenciais nisso, na questão da união familiar, de solidariedade, que a gente sempre teve, isso contou muito. É uma realização muito grande. Uma coisa que percebo muito é que, como pessoa negra, quando estou num espaço de poder, até a forma de se dirigir dos outros é muito informal. As pessoas me tratam assim. Talvez eu seja muito assim também, não coloque o nariz para cima, como se costuma dizer. Eu sempre fui muito tranquila, não tenho essa questão de ter o cargo A ou B ou tratar as pessoas de forma diferente, as pessoas são iguais para mim, não importa que cargo ocupam, qual a posição na sociedade. Mas percebo muito essa coisa de que se tem uma deferência maior de acordo com o status das pessoas, principalmente a partir do que a nossa sociedade enxerga como os vencedores, que têm o fenótipo branco. Elas inspiram mais respeito que nós, pessoas negras, geralmente vistas com certa desconfiança quando chegamos nos espaços. Lembro de um episódio de quando estava estudando em Porto Alegre: entrei em uma loja para comprar um cobertor, e a moça me ofereceu um daqueles simples, cinzinhas. Eu perguntei se tinha outro tipo, e ela me disse “tem, mas é muito caro”. Eu não tinha perguntado o preço, tinha perguntado se tinha outro tipo, só isso. Mas mostra que você não pode entrar como uma pessoa branca. Em certos espaços, que são mais sofisticados, as pessoas olham para você de um jeito, como se dissessem: “você não pertence a este lugar, o que você está fazendo aqui?”.

 

ACS: Talvez isso seja bem complicado de entender para quem não tem essa vivência da pele negra, que não entende que o racismo brasileiro é um racismo “de marca”. 

 

Joana: Para me impor em alguns meios, tenho que dizer assim: “eu sou fulana”, não posso ser simplesmente a Joana. Tenho de ir acompanhada de toda uma titulação para as pessoas olharem para mim e saberem quem sou. Isso acaba sendo importante também porque as pessoas começam a olhar e a dizer: “olha, é possível ter negros que ocupem cargos de destaque”. E uma outra questão que acho muito importante é o fato de a gente ter sempre que mostrar muito mais, ter que provar que é competente intelectualmente tanto quanto outra pessoa, especialmente quanto às pessoas brancas. As pessoas negras que vivem nas periferias precisam fazer um trabalho muito maior para poder se impor em termos de capacidade intelectual. E mesmo aquelas que conseguem acesso a determinados espaços são olhadas com desconfiança.

 

ACS: Diante desse contexto, desse simbolismo e desses primeiros passos dados desde a eleição, como a senhora avalia esses primeiros meses de gestão antes da posse, que demorou tanto?

 

Joana: Esses primeiros meses foram muito dedicados no sentido de tentar organizar um pouco o que seria essa gestão a partir do momento da posse. É claro que tive a vantagem, ou a desvantagem, não sei, mas vejo como vantagem, o fato de ter estado no exercício da reitoria antes da posse. Isso me deu um tempo extra para trabalhar algumas coisas, tomar pé, trazer uma equipe que pudesse acompanhar as propostas apresentadas na campanha e pensar como realizar. Eu estava no exercício, assumindo a reitoria plenamente, mas agora é um marco, é oficial, com mais legitimidade. Esses seis meses serviram para organizar as coisas, e, agora, é aproveitar a legitimidade para iniciar o que nos sentíamos tímidos para fazer.

 

ACS: E qual é o perfil da gestão que a senhora quer imprimir na UFSB?

 

Joana: Bom, acho que um dos aspectos principais da universidade é construir a participação ativa de toda a comunidade. O que tenho em mente é que haja ampla participação em todos os espaços. O reitorado é para a comunidade como um todo, independente de posições, em termos de condução da universidade. Como em todo ambiente democrático, há ideias em disputa, o que considero muito saudável, pois obriga a repensar posições, reafirmar posições, inclusive. Essa é a minha ideia. Durante o Congresso, pretendemos discutir pontos nevrálgicos da instituição. São pontos que eram tabu: ‘você não pode discutir isso porque discutir isso é ser contra o Plano Orientador’. A meu ver, a gente pode debater qualquer coisa que diga respeito à universidade, independentemente de ser contra ou a favor da gestão. Isso faz com que a gente cresça, amadureça, coloque as coisas em seus devidos espaços, e acho que tem lugar para todo mundo na universidade.

 

ACS: Além da participação, tem algum outro aspecto que gostaria de destacar?

 

Joana: Precisamos avaliar com serenidade os primeiros anos de vida da universidade. Alguns entendimentos que parecem confusos se originaram não só de problemas de gestão, mas também por conta do experimento que começamos aqui, tentando acertar aqui e ali. Então, penso que é preciso conquistar segurança institucional para todos nós, no sentido de que tenhamos definições para que nossos estudantes não fiquem, por exemplo, sem saber se ‘vai ter migração ou não vai, se posso ou não posso algo, se vou conseguir ou não o que almejo’. Creio que há uma série de questões para os próprios servidores técnicos e docentes; por isso, é importante ter o marco regulatório que dê certa segurança de que o que estamos fazendo é o que estamos mesmo querendo. Esse é um ponto que, talvez, para mim, seja um dos principais. Claro que tem outros, como a infraestrutura, mas é algo que não se deve ter planos de fazer, é obrigação. Tenho de trazer recursos, buscar melhorar a infraestrutura cada vez mais, ampliar o número de vagas, isso tudo é obrigação de quem está na gestão. Mas, do ponto de vista da instituição, do funcionamento dela, acho que a chave deve ser a busca pela segurança institucional, que virá do marco legal, da definição de fluxos, que é questão de saber em que rumo estamos indo.

 

ACS:  A senhora tocou nos termos de participação e segurança institucional. Na sua visão, quais são os principais desafios da gestão da UFSB hoje? E que objetivos a senhora quer atingir até o final da sua gestão, em 2022?

 

Joana: Estamos em um momento da universidade em que parece haver uma disputa entre dois grupos. No fundo, trata-se do mesmo projeto, com formas diferentes de visualizar. Isso foi se constituindo ao longo do tempo. Claro que querer a mesma coisa não significa fazer da mesma forma. Todo mundo quer que a universidade cresça, se torne reconhecida nacional e internacionalmente, todo mundo quer isso. Formas de fazer variam de pessoa a pessoa, mas a gente tem uma questão central que é o modelo, diferente das demais universidades. A UFABC é parecida conosco, mas a grande maioria é diferente. No meu entendimento, a maioria das pessoas que estão na universidade hoje jamais diriam: “vamos voltar a ser aquela universidade tradicional, com departamentos”. Acho mesmo muito difícil que a gente volte a isso, pois já fomos “contaminados” pela ideia de ser uma universidade que tem um projeto diferenciado. Penso que, mesmo aqueles mais conservadores, no sentido institucional, terão certa dificuldade de dizer ‘não, quero ter aquela universidade bem tradicional. Avançamos em relação a isso e é nisso que a gente tem de trabalhar e apostar. E esse é o grande desafio: fazer o projeto de todos nós caminhar. Muitas das coisas que não funcionam não é porque o projeto não é bom, mas porque não foi implementado de forma correta, tranquila. Houve muita tensão na implantação, o que gerou resistência em muita gente. O grande desafio como instituição é mostrarmos que podemos ter um projeto diferenciado e andar com tranquilidade.

 

ACS: Essas diferenças acabaram meio que petrificando o projeto?

 

Joana: Exatamente. Falei isso em 2014, logo quando chegamos aqui, e a universidade funcionava apenas naquele cantinho onde fica a Progeac hoje. Eu falei isso: ‘Olha, no afã de defender esse projeto, nós vamos transformá-lo em uma bomba-relógio’. Eu disse exatamente isso porque foram criadas tantas amarras para defender um certo entendimento do projeto que foi virando quase uma camisa de força, e as pessoas foram se sentindo sufocadas. E é claro que a tensão gerou resistências, pois algumas pessoas enxergaram isso como algo que as oprimia. Esse é o desafio, partir desse ponto de resistência para pensar o seguinte: como, a partir daqui, do ponto onde chegamos, podemos continuar de forma mais leve, mais tranquila? Isso é que precisamos trabalhar, juntando os contra e os a favor da gestão, do projeto político. A gestão precisa trabalhar com todas as pessoas e garantir que não vai “acabar com tudo”, como dizem alguns, mas precisamos fazer com que o processo continue de forma mais serena. Para isso, é preciso vencer resistências, o que só se faz com trabalho, com diálogo, mostrando por meio de ações. Assim, as pessoas vão deixando as amarras, vão se tranquilizar quanto aos rumos da instituição.

 

ACS: Isso nos leva a um dos principais eventos que estão sendo programados, o I Congresso da UFSB, que foi postergado por um tempo, devido a vários acontecimentos. Que significa para a senhora, já no início da sua gestão, capitanear esse evento voltado para a discussão, o diálogo, o alinhamento?

 

Joana: Vejo o Congresso não como a grande salvação de tudo, mas como o espaço para falar, se pronunciar, se colocar, e isso ajuda muito a tirar um pouco a tensão que parece reprimir algumas pessoas. Para ser sincera com você, desde que entrei no exercício da reitoria eu falava em fazer acontecer esse Congresso, mas a comunidade acadêmica não pode esperar que a gestão dê toda a direção. Entendo que algumas pessoas estão esperando que eu diga o que estou propondo, ficam pensando “o que a gestão está pensando, quais as propostas que tem?”, e a gente vai ter que jogar essas propostas na rua [risos]. O Congresso é um espaço de legitimidade que vamos ter para trazer propostas e dizer ao coletivo: “vamos conversar’. Eu sempre digo que defendo minhas posições, tem uma série de coisas da universidade que a gente fala muito e atua pouco. Para mim, a academia é um dos espaços mais conservadores que há no mundo.

 

ACS: A partir dessa constatação a senhora acredita que o conservadorismo seria uma dificuldade a ser enfrentada no Congresso?

 

Joana: O que costumo dizer é que a gente fala muito sobre universidade inclusiva, mas atua de forma muito conservadora ao mesmo tempo. A dificuldade é encontrar o caminho. Quando se fala que o menino da periferia, que vive na favela, precisa ser incluído na academia, deve ser incluído de que forma? Para transformá-lo em quê? Em um intelectual que vai olhar para a sua comunidade de cima e dizer: “agora eu sou um doutor’, do alto de sua capacidade intelectual e de sua sabedoria? A universidade precisa repensar como essa inclusão se dá, e acho que essa é a grande discussão do Congresso: que universitário a gente quer? Porque dizer que a universidade é inclusiva é uma coisa, mas o universitário vai encontrar aqui uma instituição conservadora, que reproduz as formas de relação da sociedade, as relações de poder, de dominação, enfim. Não temos trabalhado com a concepção de que a pessoa que vem para cá se qualifica e, depois, não tem mais relação com a comunidade. Ela sai da comunidade, perde o vínculo. Isso, para mim, é um dos aspectos complicados quando discutimos o projeto da universidade. Para mim, até agora, temos um debate sobre o projeto de universidade que é muito raso. Raso nesse sentido de ficar propagandeando que ‘a universidade é inclusiva, pluriepistêmica e tal’, mas, no fundo, não estamos trazendo as questões mais profundas para dialogar com as pessoas que chegam. Essa é uma dificuldade. Não sei se vamos chegar nesse nível de profundidade no Congresso. Acredito que ele será mais um espaço de exegese.

 

ACS: Nesses meses em que esteve como reitora em exercício, que pontos da gestão anterior destaca que foram mantidos e o que modificou no início da gestão?

 

Joana: Como permanência, destaco o próprio modelo, que não passou por nenhuma mudança: o modelo continua sendo de ciclos, há entrada pelos Colégios Universitários. Todos os projetos estão sendo mantidos na forma como estavam. O que a gente fez,  até este momento, foi esclarecer alguns pontos. Por exemplo, temos os coordenadores de curso, cujo papel sempre foi muito confuso. A Progeac é uma Pró-Reitoria que centralizava toda a gestão acadêmica da universidade, do cotidiano da gestão, que teria de ser dos decanos, da coordenação de cursos, secretarias acadêmicas, que é quem tem que tocar essas coisas. Acho que isso a gente conseguiu colocar, ainda não está o ideal, mas já conseguimos começar a mudar a ideia de que a Progeac gerencia todo o cotidiano e estabelecê-la como o que é: geradora de políticas para o cotidiano, que é gerenciado pelas pessoas que estão em contato direto com os estudantes.

 

ACS: Descentralizar a execução...

 

Joana: Exatamente. Com relação também aos próprios decanatos, estamos trabalhando muito na perspectiva de que comecem a assumir a gestão, até para que tenha a cara da comunidade acadêmica, dos campi. Enfim, que a comunidade acadêmica comece a assumir a gestão de seus espaços. Já comecei a fazer reuniões com cada unidade acadêmica para conversar sobre demandas, planejamento, com decanos, coordenadores de curso, docentes que estejam dispostos a participar da discussão, a fim de evidenciar o seguinte: ‘isso é com vocês, comecem a tocar a gestão, organizem, tragam propostas’. Claro que há toda uma política que centraliza, as Pró-Reitorias definem as diretrizes, porque a universidade não pode funcionar com cada um fazendo o que bem entender, há toda uma regulamentação, mas o dia-a-dia de uma unidade deve ser tocado pelas pessoas que estão ali, sob responsabilidade e comando dos decanos. Isso a gente já está conseguindo fazer.

 

ACS: Essa dinâmica de realinhamento, de preservação de pontos importantes com eventuais pequenos ajustes, em preparação para o Congresso, se entendi bem, vai colaborar para a preparação do PDI. Que pontos a senhora destacaria como importantes para discutir no Congresso no que diz respeito à construção do PDI?

 

Joana: O PDI, como Plano de Desenvolvimento Institucional, tem de traçar metas, como queremos estar daqui a cinco, dez, vinte anos. E, para isso, precisamos ter definições, planejamento das unidades, por exemplo. Quando mencionei as reuniões com as unidades para planejamento e levantamento de demandas, significa saber quantos cursos pretendemos ter, se as unidades têm planos de ampliação de cursos, quantos docentes são necessários para que essa ampliação ocorra, etc. Quantos equipamentos, laboratórios, quantos técnicos de laboratório, qual é a demanda, vai atender quantos discentes? No modelo de ciclos, é preciso pensar na quantidade de estudantes que entram na instituição para dar vazão lá na frente, quando ingressarem no segundo ciclo. Se tenho dois cursos de segundo ciclo numa área, não posso ter uma entrada igual à de outra área que tem dez cursos de segundo ciclo.  Tem que ter um número diferente. Não posso ter quatro BIs com o mesmo quantitativo de vagas. O BI de Ciências, que tem sete cursos de segundo ciclo, por exemplo, tem o mesmo número de vagas do BI de Artes, que leva a dois cursos de segundo ciclo. Então, não posso ter o mesmo quantitativo de estudantes ingressando nessas áreas. Tenho que pensar qual é o quantitativo que tem de entrar no início para chegar adiante com estudantes suficientes para ingressar nos cursos de segundo ciclo; caso contrário, ficamos como estamos agora porque se planejou mal lá atrás. O PDI traz a oportunidade de pensar o modelo, como pretendemos ampliar a rede de Colégios Universitários de modo que, ao juntar os cursos dos CUNIs com os cursos de primeiro ciclo da sede, tenhamos condições de verificar qual é o quantitativo de estudantes que a gente  tem de entrada para, adiante, termos um número de alunos x para os cursos. E isso tem implicações em infraestrutura, laboratórios, e o PDI vai dar conta disso. Para traçar essas metas, precisamos definir qual é o caminho que vamos traçar para atingir as metas. O PDI depende muito das definições do Congresso para que se possa pensar em como organizar esse trajeto todo, planejar. Pretendo ter um documento muito técnico, que vai mostrar assim: queremos chegar aqui, queremos ter tantos cursos, tantos estudantes, mas como faremos isso, qual é a estratégia para conseguir. O PDI vai revelar as estratégias para atingirmos nossos objetivos institucionais.

 

ACS: Como é que a senhora identifica a capacidade de manobra do orçamento da universidade nessa situação de contingenciamento de recursos?

 

Joana: Olha, a gente está fazendo um trabalho de busca de recursos o tempo todo junto ao Ministério da Educação, que é o nosso mantenedor. O primeiro foco é mostrar ao MEC nossas necessidades. A UFSB é uma universidade que ainda não tem nenhum espaço construído próprio.  Fomos adaptando espaços, mas há necessidade de termos espaços próprios. Fizemos um levantamento sobre o orçamento das universidades construídas nos últimos dez, doze anos, e o investimento que essas instituições receberam nos primeiros anos mostram que foi irrisório o que recebemos nesses anos iniciais de funcionamento. Recebemos muito pouco em relação a outras universidades. Outra coisa: precisamos de um bom planejamento. O MEC está trabalhando muito com essa questão de muitas obras paradas por falhas no planejamento. Estamos fazendo o máximo para não termos furos no andamento das nossas obras, ou seja, tentando ser fieis ao planejamento que estabelecemos. Isso nos dá argumentos para pedir recursos. Além disso, estamos trabalhando também com os deputados, solicitando emendas. É uma coisa incerta, mas já estamos fazendo contatos. Passei uns dois dias em Brasília e estive em todos os gabinetes, falei com toda a bancada baiana, não deixei um sem visitar, levando ofício, pedindo apoio para emenda de bancada, para que a gente possa garantir a finalização das nossas obras caso o dinheiro do MEC não seja suficiente. Esse é o mesmo mecanismo que todos os reitores usam para sobreviver em momentos de crise. Mas, principalmente, o bom planejamento, isso é fundamental.  É preciso ter muito cuidado. Ainda não temos muito déficit de recursos porque somos uma universidade pequena e, por enquanto, isso está sendo bem trabalhado.

 

ACS: Na sua visão, qual é a medida da autonomia da universidade no gerenciamento de recursos?

 

Joana: Fala-se muito em autonomia da universidade, mas a verdade é que a universidade não tem autonomia alguma. Do ponto de vista financeiro, a universidade recebe o recurso, tem orçamento aprovado, mas, neste momento específico, a autonomia está completamente comprometida. O MEC tem a proposta de retirar o PNAES, que é um orçamento específico. O orçamento de investimento já está com o MEC, vamos ter de ficar pedindo, pois não repassam o recurso todo. Estamos com muita dificuldade em relação à autonomia da universidade, que está cada vez mais comprometida. Os reitores, na Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior], têm feito um esforço muito grande para reafirmar a necessidade de assegurar a autonomia, e esse é um trabalho que a gente tem feito. Nas reuniões da Andifes, são chamados Ministro, Secretário da SESU, dentre outros, para que possamos reforçar a necessidade de manutenção da autonomia universitária.

 

ACS: Tivemos notícias interessantes sobre a interação da UFSB com a rede de educação básica, especialmente da formação de novos professores, com a aprovação de bolsas para o PIBID e o Programa de Residência Pedagógica. Como a senhora vê essas medidas no âmbito da interação entre a UFSB e a sociedade, em especial com a rede de educação básica?

 

Joana: Precisamos trabalhar muito para reforçar nossas licenciaturas e aumentar o interesse de nossos estudantes por esses cursos, que ainda estão aquém do que poderiam ser. Uma coisa que acho muito importante é a relação dos nossos estudantes com os professores da rede de educação básica, dos nossos professores com esses docentes, que precisa ser ainda mais integrada. É preciso trabalhar com a formação não só dos nossos estudantes, mas também dos professores que já estão na rede, com propostas de cursos de especialização e mestrado, a fim de trazê-los para a formação continuada. Estive ontem [28/06] com o Secretário Estadual de Educação, e ele está muito interessado em que a universidade ofereça cursos para os professores da rede. Nossos Colégios Universitários ficam ociosos o dia inteiro, só funcionam à noite. A proposta que tenho agora para levar à discussão com os professores da área de Educação é que utilizemos esses espaços para o treinamento de professores.  Neste momento, estamos em processo de instalação de salas especiais para transmissão de aulas com mais qualidade. A ideia é usar essas salas para incluir o professor que está em Canavieiras, Mucuri e que tem dificuldades para se deslocar para a UFSB para se especializar, fazer cursos de pós-graduação. A ideia é usar esses espaços para fazer esse tipo de trabalho, incluindo nossos discentes com essas bolsas de Residência Pedagógica, integrando nossos professores como orientadores, nossos estudantes como bolsistas e os docentes da rede de educação básica como pesquisadores que trabalham em uma rede integrada. Isso vai ser um ganho enorme para a educação básica, e talvez, traga as licenciaturas para um espaço de destaque na universidade, destaque que esses cursos não têm ainda. O que o nosso estudante da LI quer? Muitos entram na licenciatura para migrar para o BI de Saúde, para outro BI, querem fazer um curso de segundo ciclo. Muitos não querem ser professores. A grande maioria dos estudantes que ingressam nas licenciaturas, na ABI, não quer a docência. A licenciatura é um caminho de entrada, mas depois muitos buscam outras trajetórias que não levam à docência. Precisamos mudar esse quadro entre nossos discentes. E é importante que os nossos professores trabalhem com os docentes da rede de educação básica para que se debrucem sobre diferentes metodologias. Quando cursamos um mestrado, desenvolvemos um tema de trabalho. É esse trabalho que a gente precisa fazer com os professores da rede. Eles mesmos vão descobrir seus caminhos metodológicos, melhores formas de uso das tecnologias para as suas aulas. Trabalhando nessa interação é que a gente vai conseguir fazer frutificar mais a nossa relação com a rede de educação básica de forma mais consistente. Além da própria questão da escola, precisamos pensar em ampliar isso para um público maior da rede. Temos trabalhado com os Complexos Integrados, mas precisamos ampliar para a rede como um todo. São cerca de 20 escolas em Itabuna, mas trabalhamos com uma apenas.

 

ACS: Isso seria por meio de investimento em tecnologia para aumentar a rede metapresencial?

 

Joana:  A conversa de ontem com o Secretário de Educação foi exatamente nessa linha. Ele convocou a reunião, falou que o Estado está disposto a investir em centros nos quais podemos ter espaços, com acesso a essas redes de tecnologia, para promover a interação com os professores. E acho que isso pode ser um ganho porque poderemos usar os espaços tanto para os Complexos Integrados quanto para realizar formação continuada. Tem um Colégio Universitário em Coaraci que fica fechado o dia todo; por que a gente não usa para as atividades com os professores que estão lá na escola, e eventualmente, geramos trabalhos conjuntos, projetos, nos quais esses professores poderão atuar e nossos estudantes poderão participar? Aí podemos criar interação de fato e não apenas usar o espaço para os alunos terem aula e depois irem para casa.

 

ACS: Na reunião com a Secretaria Estadual de Educação, a senhora tratou dos Complexos Integrados e dessa interação. A senhora pode detalhar mais o plano para os Complexos Integrados?

 

Joana: Eu senti, na fala do secretário, que ele entende que precisa ter um novo foco nos Complexos Integrados. Por exemplo, a Secretaria pretende investir na educação tecnológica. Os jovens da periferia precisam começar a trabalhar cedo. Você pode dizer que é precoce, que é cedo para inserir o jovem no mercado de trabalho, mas o caso é que eles precisam trabalhar para sobreviver, é subsistência. Isso, inclusive, o fortalece no caso de decidir dar continuidade à trajetória de formação, e o primeiro ponto significa obter a subsistência. A maioria dos jovens de periferia acaba trabalhando em subempregos. A ideia é que a gente tenha os colégios com ensino médio e, a partir disso, o estudante fica mais dois anos na educação tecnológica, em conjunto com os Institutos Federais, que já têm tradição na educação tecnológica, e nós, na formação de professores e licenciaturas, de modo a atuar nos Complexos de forma integrada. Isso significa que não se trata apenas de colégio em tempo integral, mas formação continuada de professores, educação tecnológica e ensino médio. Tratamos disso para pensar em como podemos trabalhar nessas três vertentes.


 

ACS: Na discussão em relação à rede Anísio Teixeira, a proposta da chapa Pé no Chão previa a consolidação dos Colégios Universitários. O que já está em andamento para efetivar essa proposta? E podemos mesmo esperar a expansão dos Colégios Universitários?

 

Joana: Eu posso estar sendo muito ousada diante do quadro caótico que temos no país hoje, em termos das incertezas quanto ao futuro político e econômico, mas tenho o plano de, já no ano que vem, expandirmos a rede. Já temos três salas em funcionamento no Campus Jorge Amado para transmissão de aulas, com quadros interativos, câmeras, melhor visibilidade da sala remota por parte do professor e dos estudantes. Tudo isso são formas de garantir interatividade maior, e a gente precisa incentivar que os professores usem essas tecnologias. Temos três salas em Itabuna, montamos duas em Teixeira de Freitas e duas em Porto Seguro com esses equipamentos.  Na conversa com o Secretário, dissemos o seguinte: ‘se há interesse nesses cursos de formação de professores, então a gente quer que vocês nos forneçam salas com boa conexão e que nos deixem instalar nossos equipamentos lá’. A intenção é começarmos a trabalhar nessa parceria com a Secretaria. Nada impede que haja um Colégio Universitário lá em Canavieiras se tivermos uma sala que permita transmissão daqui [de Itabuna] para lá, de forma qualificada. Já temos essas salas qualificadas. Tem professor que está dando aula para duas turmas ao mesmo tempo e está sendo tranquilo, os estudantes estão gostando. Se tiver três salas dessas e se, em cada uma, é possível dar aula para dois Cuni ao mesmo tempo, então é possível ter seis Colégios Universitários com seis turmas simultaneamente só em Itabuna, se tivermos esses espaços e uma conexão decente. Estamos trabalhando para qualificar essas salas nos Colégios Universitários para que, já no ano que vem, possamos expandir. Outra questão em relação aos Colégios Universitários é pensar em formatos diferentes. Por exemplo, se abrirmos um Cuni em uma aldeia indígena é porque tem uma razão de estar em uma aldeia indígena. Talvez a forma de ensinar, o tipo de material que será necessário levar para aquela sala vai ser diferente do que se leva para um estudante não-indígena que tem outro contexto e outras necessidades. A gente precisa pensar um pouco em não agir de forma padronizada. E se for implantar um Cuni dentro de um assentamento? Tem uma série de questões particulares que será necessário considerar. O que aqueles estudantes querem aprender com base no que vivem naquele contexto? Uma comunidade quilombola, uma comunidade de assentamento tem toda uma dinâmica de conhecimento particular. Aprendem e ensinam sobre a forma das relações com a terra, e a gente aprende muito com eles. Então, não pode ser algo que pareça que estamos indo para ensinar, do alto da nossa titulação. Vamos para aprender e ensinar. Tem de ser uma dinâmica que respeite e que atenda as particularidades de cada comunidade. Uma aldeia indígena é diferente de um assentamento, que difere de uma comunidade quilombola. Tudo isso tem que ser considerado no trabalho que estamos propondo a essas pessoas.

 

ACS: Em termos da pesquisa, um dos pilares da universidade, está sendo pensada a criação de uma política voltada para essa atividade? E, dentro do nosso modelo, que propõe diferenças estruturais e processuais, qual seria o perfil de uma Pró-Reitoria que gerisse a pesquisa?

 

Joana: A pesquisa, na nossa universidade, está muito no pulso do voluntarismo. As pessoas fazem pesquisa porque já vieram de outras universidades com pesquisas iniciadas, trazem seus projetos, já trouxeram até grupos de pesquisa. Alguns já conseguiram criar algo, mesmo que incipiente, na UFSB. A universidade tem dado incentivo com bolsas de iniciação científica, mas de forma muito fragmentada, sem uma política da instituição. A ideia de criação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação é algo que vejo como urgente urgentíssimo. E é algo que, inclusive, creio que independe do Congresso. A ideia é propor o quanto antes a criação da nova Pró-Reitoria, essa e a da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas. A Pró-Reitoria de Pesquisa, para mim, é essencial e que tenha um norte, porque está muito solto, muito restrito aos editais, e a pesquisa vai muito além disso. Qual é o nosso horizonte com a pesquisa, qual é o foco que a UFSB tem, que formas de incentivos planejamos? Por exemplo, estamos aqui numa região do cacau. O Centro de Formação em Ciências Agroflorestais tem que estar focado nisso, tem que ter isso como objeto de estudo por parte do grupo de professores que trabalha em uma instituição que está inserida nesse contexto. A mesma coisa o pessoal do Centro de Formação em Ciências Ambientais: tem que trabalhar pensando em uma série de problemas que temos aqui na região. E a Pró-Reitoria de Pesquisa deverá fazer esse mapeamento, quais são os focos principais da pesquisa, o incentivo institucional, para pensar num direcionamento para algumas áreas fundamentais para a região. Isso é urgente e essa futura Pró-Reitoria precisa começar as atividades se debruçando sobre isso. A ideia é que seja de pesquisa e pós-graduação porque percebemos que a pós-graduação, geralmente, está separada da graduação. O que não implica dizer que um estudante da graduação não vai poder cursar um componente de um Programa de Pós-Graduação. Ele poderia se matricular num componente oferecido na Pós-Graduação, não vejo problema nenhum nisso. Em outros países isso acontece sem problema. Quando cursei meu doutorado, lá nos Estados Unidos, fazia componentes com os discentes de graduação. Penso que a gente tem que trabalhar sem essas barreiras. E, principalmente, se falamos em interdisciplinaridade. Muitas vezes, a pessoa é formada em uma área e precisa de um saber de uma área cuja base não conhece. Então, é necessário cursar um componente do primeiro ano daquela área porque não teve contato, fazendo um curso inicial daquela formação para entender como funciona, para ver como consegue relacionar aquela área com outra. E a Pós-Graduação, em termos da organicidade, está mais próxima da pesquisa. A ideia é que a gente coloque a pós-graduação e a pesquisa no mesmo patamar na nova Pró-Reitoria.

 

ACS: A senhora pode adiantar se vamos ter outras novas estruturas já nesse início da gestão?

 

Joana: Além da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação, tem a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas que queremos criar, separada da Prosis. A Prosis segue sendo a Prosis, com o foco voltado para a extensão e a sustentabilidade. A pesquisa ainda tem uma localização, por mais difusa que seja; a extensão nem isso tem. Há projetos de extensão, mas não estão em lugar algum, isso está difuso, hoje, não há um local em que se possa alocar a Política de Extensão da instituição. Estamos pensando já em ter o fomento para a extensão, assim como se faz com a pesquisa e, para isso, é preciso ter o local onde a extensão vai estar focada, onde serão definidas as políticas, as resoluções que regulamentem o trabalho e os projetos de extensão.  Também pensamos em transformar a Diretoria de Gestão de Pessoas em uma Pró-Reitoria. A Propa tornou-se muito grande e é o setor que faz a máquina funcionar. A gestão de pessoas ficou meio como um apêndice em meio desse foco todo em obras, infraestrutura, gestão, meio como um peixe fora d’água e com demandas peculiares. Hoje, sem considerar o concurso em andamento, temos cerca de 240 professores, vamos chegar a mais de 300, técnicos também; então, teremos em breve 600, 700 servidores. Isso gera uma série de questões do dia-a-dia dos servidores, que também carece de políticas para o segmento, tema sobre o qual essa Pró-Reitoria precisará se debruçar e atuar.

 

ACS:  A senhora participou, em junho, da III CRES, evento internacional que propiciou trocas de experiências entre reitores de diversos países. Que pontos discutidos no evento a senhora destaca como importantes para a UFSB?

 

Joana: Acho que casa um pouco com o que falei antes sobre a universidade. Foi muito importante a participação, estavam lá muitos reitores da América Latina e Caribe. Tinha cinco mil pessoas, para você ter ideia. E o foco principal da discussão foi essa forma como a universidade latino-americana e caribenha ainda usa toda a sua estrutura e filosofia de atuação baseada na influência da Europa e dos Estados Unidos. Como a gente pode ter uma universidade latino-americana e caribenha que seja de fato latino-americana e caribenha e que dê conta das demandas desses territórios? Por exemplo, as publicações que valem mais pontos são as que publicam em inglês em um continente no qual o principal idioma é o espanhol e, depois, o português. A valorização, e a gente reforça muito isso, é para publicação em inglês, e a nossa comunidade não lê inglês. Publicamos muito para nossos pares espalhados no mundo. Isso é importante? É, mas precisamos pensar em ter isso também nos eventos internacionais com outros países que sejam da América Latina e do Caribe. É importante que nos voltemos para a nossa comunidade interna. Outro ponto foi sobre a necessidade de pensarmos comunidades que têm riquezas culturais enormes. Os indígenas que habitaram a região e as tradições que ainda se mantêm, subsistem de alguma forma, e nós tratamos como produto turístico, não como uma questão de identidade desses povos que resistem, atribuindo valor cultural, tradição que herdamos, de alguma forma. Esse é um ponto, a interculturalidade, os desafios sociais, o papel da educação superior frente aos desafios atuais. Essa é uma conferência que ocorre a cada dez anos. A primeira foi em Havana, Cuba, a segunda em Cartagena de Índias, Colômbia, a terceira em Córdoba, Argentina, em homenagem aos 100 anos da Reforma de Córdoba. A reforma teve origem em um movimento de estudantes e foi a partir daí que surgiu o conceito de autonomia universitária, da participação de estudantes nos colegiados das universidades, a extensão, isso veio da Reforma de Córdoba. Foi discutido o que mudou de lá para cá, e a gente percebeu que mudou muito pouco, que temos muito a fazer. Houve avanços, mas não foram tão significativos quanto poderiam ter sido. Foi um debate muito interessante exatamente por reafirmar a necessidade de criar essa identidade com a cultura latino-americana. Por exemplo, quando eu falo que a internacionalização que pretendo para nossa universidade deve se aproximar dos povos latino-americanos, e africanos também, por razões óbvias, é porque precisamos mesmo estar mais próximos dessas comunidades. E a grande maioria das pessoas que saem para fazer o doutorado vai para a Europa ou Estados Unidos, eu mesma fui para os Estados Unidos. Ainda não trabalhamos entre nós aqui para pensar essas relações, precisamos nos aproximar mais uns dos outros para descobrir o que cada um está fazendo.

 

ACS: De certa forma, essa seria outra faceta do conservadorismo acadêmico?

Joana: Sim, nessa linha parece que vale mais um doutorado em Brown, como eu fiz, que na Colômbia ou na Argentina.

 

ACS: E isso mostra um aspecto já mencionado em alguns estudos de Relações Internacionais que acusam o Brasil de ser um pouco imperialista, de virar as costas para a América Latina.

 

Joana: Precisamos estreitar mais as relações com essas universidades, pensando exatamente em inclusão, trabalhar mais com esses povos do que com a Europa, para não reproduzirmos a cultura europeia mais e mais, aproximando-nos sempre deles e nos afastando das comunidades daqui da América Latina. A abertura da Conferência foi fantástica, com um grupo da Argentina que trabalha com música autóctone e instrumentos fabricados pelos discentes com base nas tradições indígenas. Foi um evento muito bom para discutir o potencial enorme que temos na América Latina, no aspecto de conclamar para uma aproximação maior, para que a gente possa se articular no sentido de uma identidade cultural e intelectual mais próxima dos nossos ancestrais, que nos deixaram tanto legado.

 

ACS: A gente pode esperar algumas propostas nesse sentido de aproximação em diversos âmbitos, como mobilidade acadêmica, colaborações na pesquisa?

 

Joana: Uma coisa que me ocorreu e ainda vamos avaliar é se é possível, em termos de orçamento, estabelecermos bolsas para alguns dos nossos estudantes indígenas passarem um período de estudos em uma universidade indígena na região andina, por exemplo. Seria muito rico em termos de trocas de cultura entre representantes desses povos. Tem algumas coisas que podemos fomentar para aproximar as relações. Já estamos recebendo estudantes da América Latina, devido ao acordo com o Grupo Coimbra, e a ideia é aumentarmos essa participação, trazendo estudantes de fora e enviando os nossos estudantes para outros países.

 

ACS: Uma questão que se aponta regularmente é a da sobrecarga de trabalho. Nosso modelo tem suas virtudes e recebe também críticas, por vezes direcionadas ao ritmo acelerado do regime quadrimestral. O que a senhora pode adiantar sobre possíveis alternativas para amenizar ou resolver essa questão?

 

Joana: O regime quadrimestral entra na leitura daquelas coisas que a gente não sabe bem se é assim por não ter sido bem implementado ou se é porque se trata realmente de um regime muito intenso de trabalho. Por exemplo, a UFABC resolveu um pouco essa questão do quadrimestre instituindo um mecanismo que permite ao professor concentrar a carga horária em dois quadrimestres e ficar um quadrimestre livre – não que necessariamente ele vá para um pós-doc ou que se afaste da universidade – para se dedicar à pesquisa e atividades outras que não a sala de aula. Isso foi como a UFABC resolveu esse problema, obviamente respeitando as necessidades de aula e planejando. Isso é possível fazer para acalmar. É realmente um regime bastante intenso porque há um intervalo de apenas quinze dias e já recomeçam as aulas. É uma carga muito forte de trabalho à qual todo mundo fica submetido. E de estresse também. A comunidade acadêmica precisa discutir um pouco essa questão. A ideia é trabalharmos de forma mais organizada, estabelecendo os fluxos de maneira mais tranquila. O grande problema é que chegamos aos quinze dias de recesso para resolvermos todos os problemas do mundo. Isso teria de começar no início do último quadrimestre antes do estudante fazer a migração. Por exemplo, algo que já melhorou neste quadrimestre foi o fato dos alunos não terem aquela coisa da Secad (Secretaria Acadêmica) ficar alucinada para resolver os problemas de matrícula. Tudo foi feito pelo próprio estudante pelo SIGAA; de casa mesmo ele fazia a matrícula sem problemas, o que já ameniza um pouco o estresse, a ânsia. Há uma série de questões de organização. Particularmente, defendo que, primeiro, a gente trabalhe a organização para ver se isso diminui o estresse causado pela intensidade do regime quadrimestral antes de pensar em acabar com ele. Ainda aposto em nossa capacidade de minimizar. Mas é algo a ser avaliado, a comunidade vai se debruçar sobre isso e aí a gente vai conversar para ver se é possível que ele se mantenha. Eu defendo a manutenção do regime quadrimestral, mas sempre digo que tenho minhas convicções sem cláusulas pétreas. Não tenho nenhum problema se a comunidade decidir que a gente deve ter um regime semestral ao invés do regime quadrimestral.

 

ACS: Vários dos nossos colegas servidores, e claro, também estudantes, se envolvem com o debate de políticas públicas, ligam-se a movimentos sociais, atuam justamente para exercer o controle social, algo muito importante para a participação democrática. Como a senhora vê essa atuação, vai haver uma institucionalização dessa vontade de participar?

 

Joana: Sim, há uma série de instituições, organizações, que pedem indicação de nomes para que a universidade participe desses espaços de diálogo e decisão. Precisamos institucionalizar isso, essa busca de pessoas interessadas em participar. Até porque, quando chega aqui o Conselho Municipal de Cultura, por exemplo, querendo alguém para representar a universidade naquele espaço, a gente fica pensando em quais nomes indicar. São possibilidades reais de interferir nas políticas da cidade. A universidade pode ter alguém que goste daquele tema e que seja capaz de discutir o assunto de forma qualificada, isso é muito bom para o conselho, para a universidade e para o município. Isso é algo que precisamos trabalhar para ter esses interesses mapeados, quais servidores querem participar e em quais temas. Às vezes, você pode ter duas ou três pessoas que se interessam e que estão aptas para debater o assunto e a gente não sabe quem se interessa por qual tema. Em termos de instituição, nós temos o Guia de Fontes, que vocês [da ACS] organizam, que talvez pudesse ajudar nessa indicação dos interesses de cada um nessas participações.

 

ACS: Recentemente, o Consuni aprovou algumas iniciativas da comunidade interna, motivando avanços nas Políticas de Ações Afirmativas, como a questão das cotas para o ingresso no 2º ciclo, por exemplo. O que isso representa para a universidade, em sua opinião?

 

Joana: Primeiro, houve a mudança no percentual do segundo ciclo. Tínhamos 55% de cotas no primeiro ciclo e de 75% de cotas no segundo. Na época que o Consuni discutiu o tema, inclusive, fui tachada de ser contra as cotas exatamente porque disse que precisávamos ter coerência. Se temos 55% de cotas na entrada, o que fazemos com o excedente que não cabe nas cotas de 75%, se havia 55% de cotas na entrada? Mas resolvemos isso fazendo também a entrada ter 75% via Sisu. Agora está coerente, pois mantém o percentual para os alunos nas duas entradas. Essas são políticas que, para mim, reforçam a necessidade da universidade pública cumprir o papel de atender o público que precisa dela, que é a população mais carente, mais vulnerável. Aqui, temos ainda, além da vulnerabilidade econômica, pessoas e comunidades que são mais vulneráveis, como os indígenas, os quilombolas, pessoas negras e pardas, que têm grande dificuldade de acessar a universidade. Você vê muitas pessoas negras estudando à noite nas universidades particulares que precisam trabalhar o dia inteiro e pagar o estudo porque não conseguem entrar na universidade pública; ainda há dificuldade de acesso a essas instituições. Isso tem melhorado com as políticas de cotas, mas há muito a fazer.  Por exemplo, a lei determina que seja no mínimo 50% de cotas para alunos da escola pública, mas, aqui, temos cerca de 80% que se formam no Ensino Médio de escolas públicas. Estabelecemos um percentual de 50% para oriundos da escola pública. Acho que precisamos avançar nisso. Já avançamos, uma cota de 75% se aproxima muito hoje do total de alunos que se forma no Ensino Médio de escola pública. Isso tem melhorado também com a inclusão de pessoas trans, que sempre foram muito marginalizadas pela sociedade. Há a questão dos próprios Colégios Universitários, que trazem estudantes do território a partir de uma seleção localizada, mais regional. Estamos agora nessa discussão sobre comissões de verificação de autodeclaração. São esforços para melhorar a fim de garantir que as políticas que estão sendo implementadas realmente funcionem.

 

ACS: Como temos uma entrada anual de calouros, nem sempre esses novos alunos têm a perspectiva histórica da universidade, e essa distância aumenta com o passar do tempo. Os discentes que ingressarem em 2024 não terão a pálida ideia de como foi ingressar em 2014. Que UFSB os calouros estão encontrando agora e no que ela difere da UFSB de três, quatro anos atrás?

 

Joana:  Acho que a gente já tem uma diferença entre quem ingressou lá atrás e quem entrou em 2018. O estudante que ingressou em 2014 teve uma carga de incertezas muito, muito maior que a desses estudantes que começam agora. O fato da gente ter um início do segundo ciclo marcou muito essa perspectiva de trajetória dentro da instituição. O discente que entrou em 2014 chegou aqui para fazer um bacharelado que ele não sabia direito o que era e não enxergava perspectiva, ‘eu quero fazer engenharia, mas não sei qual o caminho para chegar lá’. O calouro atual já tem isso definido, já tem essa questão dada. Para mim isso já é uma mudança muito importante, pois ele já vislumbra a trajetória para chegar onde quer. E vamos trabalhar para que fiquem cada vez mais evidentes as possibilidades para os estudantes, dar essa segurança de andar pela instituição de uma forma mais tranquila, conhecendo os percalços. Porque a grande questão que está colocada hoje é a seguinte:  tomemos a Medicina como exemplo, que é o grande gargalo atual, devido à quantidade de alunos que querem ingressar nesse curso. O discente sabe que tem uma dificuldade na frente, mas como não tinha isso claro sobre como seria o momento de passagem, o processo se tornou muito traumático. Se o aluno tem certeza sobre qual é a trajetória a seguir, sabe que vai ter um momento de disputa adiante, mas já está ciente sobre como se conduzir. Os estudantes de 2014 não tiveram nada disso, ficaram totalmente soltos.  Quando começamos a universidade, em 2013, no início da discussão do projeto, quando o nosso primeiro pró-reitor da gestão acadêmica saiu, uma das coisas que ele colocou foi exatamente isso: a necessidade de termos os projetos pedagógicos dos cursos que iríamos implantar, para que o aluno já soubesse, porque isso ia dar o norte. E ele saiu por conta disso, por não concordar com o fato de começarmos sem as definições necessárias. É preciso dar ao estudante segurança. Com isso, se diminui muito o estresse e a angústia.

 

ACS: Em relação às instâncias da comunidade externa, os municípios, associações representativas, as empresas que têm representação no Conselho Estratégico, como a senhora avalia a relação da universidade com o Conselho e que perspectivas vê para o começo da gestão?

 

Joana: Tivemos uma reunião do Conselho em maio, na qual expus a necessidade de ser de fato um conselho consultivo da instituição, para que possamos trabalhar de forma a não apenas trazer as pessoas para dentro da universidade, sentar em uma reunião e apresentar uma série de demandas. Queremos que o Conselho se aproprie da universidade no sentido de cuidar de um bem público que nos pertence a todos, e que, portanto, tenhamos um diálogo contínuo, forte, em torno das questões que dizem respeito ao território. A forma como construímos esse Conselho propiciou que ficasse centrado em uma vertente muito assistencialista da instituição, no sentido de que a expectativa é que a universidade vai trazer algo para eles quando, na verdade, a reciprocidade, a troca é que deve ser valorizada. Além disso, o Conselho Estratégico Social tem que ter a perspectiva de que ele tem na universidade um bem público que pertence à comunidade e, por isso, ele também tem obrigações para com essa universidade, na defesa, na sustentação, na forma de funcionamento desta instituição, mas em uma dimensão que não seja tão assistencialista. Nesse sentido, precisamos estabelecer uma relação mais próxima e fortalecida com o Conselho Estratégico Social de modo que se tenha de fato um Conselho que discuta a dimensão do território incluindo a universidade em meio a todos os outros atores, sendo a universidade mais um, não o maior, mas um elo a mais da comunidade territorial. E que todos assumam obrigações, deveres e direitos, obviamente com o devido resguardo das especificidades de sua atuação, todos implicados em um processo de integração.

 

ACS: Agradeço pela atenção, professora.

Joana: Obrigado a você.

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