Microplástico do glitter pode contaminar cadeia alimentar a partir de insetos aquáticos, aponta estudo feito no PPGCTA
O problema da dispersão de microplásticos no ambiente global é investigado por pesquisadores de diferentes áreas do saber. Uma das linhas de pesquisa sobre esse tema trata de como mapear a contaminação na cadeia alimentar, para entender como esses materiais passam de um ser vivo a outro. Saber disso ajuda a agir para reduzir o espalhamento e mitigar os efeitos da contaminação, inclusive para a saúde humana.
Uma pesquisa conduzida na Universidade Federal do Sul da Bahia investigou como insetos aquáticos podem servir como bioindicadores da presença de micro e nanoplásticos em ambientes de água doce, partindo da identificação dos traços do glitter, usado comumente no Brasil para festas, especialmente o Carnaval. O estudo Glitter ingestion by bromeliad-dwelling macroinvertebrates: implications for freshwater microplastic contamination ("Ingestão de glitter por macroinvertebrados habitantes de bromélias: implicações para contaminação por microplásticos em água doce") foi publicado na revista científica Environmental Toxicology and Chemistry e é assinado por Alana Carmo de Oliveira, Luana Oliveira Drummond, Sophia De Grande e Felipe Micali Nuvoloni (UFSB). O artigo deriva da pesquisa de Alana no Programa de Pós-graduação em Ciências e Tecnologias Ambientais (PPGCTA), com orientação do professor Felipe Nuvoloni.
O estudo demonstra que alguns insetos podem servir de bioindicadores para contaminação ambiental por microplásticos e que estes podem se acumular em diferentes partes do corpo dos organismos. Os insetos podem levar os contaminantes adiante na cadeia alimentar e de um ecossistema ao outro, do ambiente aquático ao terrestre. Outro apontamento da pesquisa é a fragmentação dos microplásticos pelos insetos, gerando partículas ainda menores, os nanoplásticos, mais disponíveis para outros organismos da cadeia alimentar, como rotíferos e microcrustáceos.
Risco negligenciado
O glitter foi objeto do estudo por seu amplo emprego, principalmente em adereços e maquiagens em festas, e por ter dimensão micro (0.036 × 0.410 mm), estrutura laminar e alta persistência no ambiente. Essas características facilitam sua dispersão via sistema de saneamento e seu acúmulo ao longo da cadeia alimentar especialmente em ecossistemas de água doce. A equipe trabalhou com coletas de insetos associados a bromélias, no Campus Porto Seguro.
Alana afirma que a pesquisa foi motivada pela crescente preocupação com os impactos dos microplásticos em ambientes naturais, especialmente partículas decorativas como o glitter: "Os ambientes aquáticos em geral são aqueles mais afetados pela contaminação por microplástico, pois as partículas são carregadas pela chuva até os rios, lagos e mares, além do microplástico presente no esgoto doméstico e industrial. O foco do trabalho foi o estudo em ambientes aquáticos de água doce, e as bromélias foram utilizadas como sistemas modelo, pois acumulam água em sua roseta central e formam pequenos ecossistemas aquáticos que funcionam como micro-habitats para diversas espécies de organismos, possibilitando a realização de estudos de bioacumulação e biomagnificação trófica".
A pesquisadora Alana explica que as bromélias favorecem o acúmulo de água doce em cavidades formadas por suas folhas, as rosetas centrais, formando assim microecossistemas complexos e megadiversos, ideais para estudos ecológicos. Parte da biodiversidade desses microecossistemas das bromélias são os insetos aquáticos. Esses macroinvertebrados são tidos como bioindicadores ideais por terem papel central na ciclagem de nutrientes, hábitos alimentares diversificados (uns são filtradores, outros se alimentam de detritos e até de espécies predadoras) e, por esses fatores, terem capacidade de transferir microplásticos entre ecossistemas. "O glitter, usado em festas, cosméticos e roupas, frequentemente chega nos ambientes aquáticos por lavagem atmosférica e escoamento superficial. Investigar a presença de glitter nesses insetos nos permite compreender uma rota ainda pouco explorada de contaminação ambiental e bioacumulação em sistemas aquáticos e o seu carregamento para ambientes terrestres", detalha a pesquisadora.
Outro diferencial da pesquisa é a abordagem da contaminação por microplásticos em ambientes de água doce. Alana explica que o problema de microplásticos no ambiente marinho é mais estudado de forma geral, com as fontes mais pesquisadas sendo fibras sintéticas liberadas por roupas durante lavagens domésticas, fragmentação de embalagens plásticas, especialmente garrafas, sacolas e utensílios descartáveis. Além disso, a contaminação pode se dar por pellets industriais (nurdles) usados na fabricação de plásticos, produtos de higiene pessoal, como esfoliantes com microesferas plásticas, pinturas e tintas industriais e resíduos de pneus em áreas urbanas. "O glitter ainda é um tipo de microplástico pouco estudado nesse contexto, mas de grande importância por ser amplamente utilizado em maquiagens, decoração, roupas, brinquedos e muito comum no carnaval".
Como foi feita a pesquisa
Para compreender mais sobre esse processo, Alana e equipe coletaram água e insetos de fitotelmatas de Aechmea blanchetiana, uma espécie de bromélia, homogeneizaram e distribuíram em 40 frascos plásticos perfurados, de 50 ml cada. Metade desses frascos formou o grupo de controle, mantido em condições normais, e a outra metade recebeu uma pequena porção de glitter, de modo a simular a contaminação em ambiente natural. Os frascos foram mantidos em condições de incubação durante sete dias, com temperatura de 22ºC e períodos de claridade por 14h e escuridão por 10h.
Após esse período, Alana e colegas realizaram a identificação taxonômica para determinar as famílias de insetos representadas nas amostras. Em seguida, fez-se a detecção de microplásticos, usando microscopia óptica para localizar presença do material em segmentos corporais dos animais analisados: cabeça, tórax e abdômen. Os microplásticos encontrados foram categorizados quanto à dimensão: inteiros, se medindo entre 20 e 50 micrômetros, e fragmentados, se menores que 20 micrômetros, o que indica fragmentação no organismo do inseto. A análise incluiu tambem teste estatístico computacional para comparar a distribuição dos microplásticos entre as famílias de insetos e as regiões corporais em que esse material foi encontrado.
Contaminação confirmada

Os resultados mostraram que o glitter é um vetor importante de contaminação por microplásticos. Duas famílias de mosquitos tiveram as mais altas taxas de contaminação por microplásticos: Chironomidae, com 99% de contaminação, e Culicidae, com 97% de contaminação. Os microplásticos e nanoplásticos foram encontrados dentro dos organismos, indicando consumo devido ao generalismo alimentar característico dessas famílias: larvas da família Culicidae (filtradores) ingerem partículas finas e fragmentam microplásticos ativamente. Já as larvas da família Chironomidae ingerem e quebram microplásticos por raspagem e trituração.
O professor Felipe explica que ainda não foi realizada a identificação taxonômica ao nível de espécies, mas as famílias com maior contaminação representam a maioria das espécies de pernilongos e mosquitos em geral. "Ambas são bastante comuns em fitotelmatas de bromélias e áreas urbanas, e têm características que favorecem o contato direto e prolongado com os microplásticos suspensos na água. O hábito filtrador das larvas de Chironomidae e a alimentação por suspensão dos Culicidae podem ter favorecido a ingestão acidental destas partículas".
A pesquisadora Alana indica que os insetos podem atuar como bioindicadores na identificação de locais contaminados. Esse dado é relevante, pois ainda que os insetos aquáticos analisados não façam parte direta da dieta humana, eles desempenham um papel central em cadeias tróficas que eventualmente se conectam a organismos consumidos por humanos, como aves e peixes. “Estes insetos têm sua fase imatura na água (onde se contaminam com o microplástico) e vida adulta terrestre (voadores), carregando as partículas para outros ambientes e ecossistemas”, afirma Alana.
O orientador de Alana, professor Felipe Micali Nuvoloni, argumenta que em regiões como Porto Seguro, com alta biodiversidade e atividades turísticas, a presença de microplásticos pode representar um alerta para o risco ecológico e, de forma indireta, para a saúde humana, principalmente se associada ao consumo de peixes de riachos e lagoas contaminadas, além do próprio do consumo de água.
“A presença de partículas de glitter em insetos muito comuns, como pernilongos e mosquitos em geral (Culicidae e Chironomidae), indica um potencial de transferência trófica (alimentar) para outros insetos e animais de maior porte. Há inclusive estudos recentes indicando que pode haver a transferência de partículas plásticas para mamíferos durante a picada”, detalha o professor.
Medidas possíveis
A partir dos resultados do estudo, é possível abordar propostas para solucionar ou mitigar esse problema. O professor Felipe Nuvoloni afirma que uma das ações à disposição é proibir gradualmente a produção do glitter plástico tradicional, que é composto de PET e alumínio. "Esse tipo de material demora muito para se decompor e pode se espalhar facilmente pelo ambiente. Em seu lugar, especialistas recomendam o uso do chamado bioglitter, produzido a partir de celulose, mica ou outros compostos naturais que se degradam mais rapidamente".
Ainda no campo das políticas públicas, outras iniciativas podem contribuir para a melhoria da situação, como campanhas de conscientização sobre o uso e até banimento do glitter, mostrando os riscos ambientais desse produto, e o aprimoramento dos sistemas de coleta de lixo e tratamento de esgoto, ineficientes para a filtragem de microplásticos. Já pelo viés tecnológico, o professor Felipe destaca as pesquisas em desenvolvimento de materiais compostáveis de verdade e filtros mais eficientes para uso em estações de tratamento de água e esgoto, ajudar a reduzir a contaminação.
Em termos da contribuição da pesquisa de Alana, o professor Felipe conta que há outros estudos em andamento e futuros sobre microplásticos e organismos aquáticos. "Por exemplo, recentemente avaliamos como o microplástico pode afetar o desenvolvimento e sobrevivência do Aedes aegypti, o mosquito transmissor da dengue, zika e chikungunya, e alguns resultados preliminares indicam que essa espécie teve seu desenvolvimento acelerado em ambientes contaminados por microplástico, atingindo a fase adulta mais rapidamente".
Efeitos indiretos também estão na pauta de investigações, como a transmissão de microplásticos para animais que se alimentam de invertebrados contaminados, com atenção para a transferência trófica e biomagnificação do microplástico na cadeia trófica aquática. Conforme o professor Felipe, esse estudo parte da premissa de que essa contaminação causa alterações no comportamento de predadores e presas: "Este experimento também já foi finalizado e o manuscrito está em revisão em periódico científico".
Outra proposta de pesquisa é avaliar também se o microplástico pode ocasionar alterações na estrutura e composição em ecossistemas aquáticos. "Esses estudos futuros vão ajudar a entender melhor não só os efeitos do glitter, mas também os riscos dos microplásticos em geral para a biodiversidade e para a saúde dos ecossistemas aquáticos", diz o pesquisador.

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