Rejeitos da Barragem do Fundão seguem em alta concentração na foz do rio Doce, apontam cientistas
O rompimento da Barragem do Fundão, ocorrido em 5 de novembro de 2015 na cidade de Mariana, Minas Gerais, é o maior desastre ambiental da indústria mineradora brasileira e provoca efeitos até hoje. Além da destruição de localidades e a perda de 19 vidas humanas, os danos à fauna e à flora provocados pela enxurrada de rejeitos da mineração ultrapassam o território da cidade e chegam até aos estuários da costa brasileira. Uma pesquisa realizada por cientistas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e da Universidade de São Paulo (USP) testou uma combinação de métodos e técnicas para identificar traços dos rejeitos nos sedimentos marinhos. O artigo Tracing iron ore tailings in the marine environment: An investigation of the Fundao dam failure, na revista Chemosphere, é assinado por Marcos Tadeu D'Azeredo Orlando (Universidade Federal do Espírito Santo/UFES), Elson Silva Galvão (UFES), Arthur Sant'Ana Cavichini (UFES), Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel (Centro de Formação em Ciências Ambientais/UFSB),Cintia Garrido Pinheiro Orlando (UFES), Caroline Fiorio Grilo (UFES), Jacyra Soares (Universidade de São Paulo/USP), Kyssyanne Samihra Santos Oliveira (UFES), Fabian Sá (UFES), Adeildo Costa Junior (UFES), Alex Cardoso Bastos (UFES) e Valéria da Silva Quaresma (UFES).
O estudo emprega dados amostrais de período anterior a 2015, selecionando um ponto de coleta mais representativo, dentre os diversos locais de amostragem definidos nas pesquisas, entre 2012 e 2019. A equipe trabalhou com a amostragem até 2019, compondo um estudo longitudinal. Na estratégia de pesquisa, os cientistas combinaram técnicas de análise com uso de raios-x para verificar a composição mineralógica dos sedimentos e detectar a presença e a composição dos rejeitos de minérios. A essas ferramentas que já eram empregadas foi adicionada uma técnica que analisa a suscetibilidade magnética das amostras, o que ajudou a quantificar com mais precisão a presença de derivados do minério de ferro. Para isso, integrantes da pesquisa ligados à UFES desenvolveram um novo equipamento para medir esse parâmetro. Com isso, a equipe desenvolveu uma técnica de baixo custo e ágil para monitorar a expansão dos rejeitos e fornecer dados para estudos e decisões.
Uma das conclusões é a de que, no momento, não há como saber por quanto tempo os rejeitos de minério irão exercer sua influência no rio e no mar, tornando essenciais mais estudos sobre a extensão dos prejuízos a longo prazo. Como os índices de rejeitos permanecem em alta concentração nos locais de coleta, os efeitos negativos ao ambiente ainda ocorrem, e mais pesquisas são necessárias para acompanhar como esses rejeitos se espalham. O fato dos resultados do desastre da Barragem do Fundão ainda serem percebidos cinco anos após tambem motiva estudos em outras áreas sobre os efeitos da presença de elementos como chumbo, arsênico e outros nos ecossistemas dos rios e do oceano Atântico.
O professor Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel, intermediando a consulta aos demais autores do artigo, concedeu entrevista por e-mail para a ACS sobre a pesquisa.
Qual o diferencial metodológico dessa pesquisa e o que essa escolha agregou em termos de capacidade de monitoramento da área afetada?
Professor Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel: A equipe do projeto está monitorando a foz do Rio Doce desde 2015, imediatamente após o acidente. A coordenadora do projeto, a professora Valéria Quaresma, da Oceanografia da UFES, já trabalhava na foz desde 2012. Isso significa que temos os parâmetros dos sedimentos e do material particulado em suspensão na região marinha, antes do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana e após.
Nosso monitoramento implica nos estudos dos parâmetros texturais, mas também na composição mineralógica e química dos sedimentos e da lama de rejeito de minério que chega da região marinha.
Iniciamos nos anos de 2015 a 2017 o monitoramento da mineralogia por difração de raios-x e da química por fluorescência de raios-x. Nestes anos iniciais percebemos que as técnicas analíticas davam bons resultados e mostravam, nos anos após o acidente, aumentos nas quantidades de ferro e das fases minerais associadas ao rejeito do minério de ferro itabirítico no mar.
Pensando no refinamento das técnicas, levamos as amostras para o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, a fim de usar uma radiação distinta das do raios-x tradicional, para confirmar o que estávamos encontrando, além de tentar descobrir algo mais. No entanto, ainda sentíamos que faltava um método que nos desse uma quantificação mais precisa para os teores das fases minerais associadas ao rejeito de minério de ferro no ambiente marinho, uma vez que a difração de raios-x é um método mais qualitativo que quantitativo.
Nos anos de 2018 e 2019 foi então testada uma nova técnica, utilizando a susceptibilidade magnética e os resultados foram muito satisfatórios. Os minerais respondem de formas distintas quando submetidos a um campo magnético controlado. Neste sentido, os minerais que contém ferro são mais susceptíveis a serem excitados por esses campos, orientando seus momentos magnéticos enquanto expostos a eles. Os equipamentos de susceptibilidade magnética medem desta forma a intensidade com que uma substância mineral responde a um campo magnético, ou o seu potencial de magnetização. Isso não significa que o mineral permanecerá magnetizado, pois ao ser retirado o campo magnético, os minerais retornam ao seu estado normal.
O que a susceptibilidade magnética nos mostrou é que os aumentos nos teores de ferro e das fases minerais com ferro encontradas eram seguidas por um aumento mensurável da susceptibilidade magnética. Isso fez toda a diferença, pois agora podemos usar uma técnica rápida, barata e com resultados acurados e precisos.
A técnica utilizada por nós já era conhecida e utilizada para estudo de sedimentos e solos, no entanto, os físicos da equipe, professores Marcos Tadeu Orlando e Arthur Caviche, da UFES, desenvolveram um equipamento em seus laboratórios capaz de medir um “range” (um escopo) amplo de medidas de susceptibilidade magnética e com uma precisão muito maior que os equipamentos comerciais usualmente utilizados. Além disso, eles definiram uma função matemática capaz de transformar valores de susceptibilidade em percentuais em massa de fases minerais que contém ferro. Essa nova metodologia nos deu um parâmetro matemático de qualidade analítica que poderá, a partir de agora, ser utilizado no monitoramento das quantidades de fases minerais do rejeito presentes no ambiente marinho.
O que são os minerais secundários e como eles servem de vestígios ou "impressões digitais" da presença de rejeitos no leito do rio e nos sedimentos do estuário?
Professor Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel: Minerais secundários são aqueles gerados pelo intemperismo nas condições superficiais da Terra, ou seja, não são formados nos ambientes usuais de geração de rochas, mas nos ambientes de superfície. No caso dos resíduos de minério, dentre os minerais que estamos rastreando, alguns são oriundos diretamente das rochas itabiríticas, como alguns tipos de hematita e magnetita e outros são claramente secundários. Estamos utilizando o conjunto desses minerais, principalmente o que estamos chamando de “conjunto mineralógico com ferro”, como rastreadores da fonte, de acordo com os seus percentuais em massa relativos aos períodos anteriores ao acidente. Alguns dos minerais secundários estão sugerindo terem suas origens na pilha de rejeitos, na fonte, mas ainda precisamos aprofundar esses estudos.
Um dos resultados das análises é a alta concentração de rejeitos no ponto de coleta, mesmo cinco anos após o desabamento da barragem. O que isso indica, a curto, médio e longo prazos?
Professor Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel: O que nos chama a atenção, como você falou, é que passados quase cinco anos do acidente, o rejeito permanece nos sistemas fluvial e marinho. Temos indícios fortes de que após grandes chuvas e tempestades no mar, a lama com rejeito sofre ressuspensão na coluna d'água, no rio e no mar, e é transportada. Uma parte desse material é tão fino (colóide), que praticamente não se deposita quando suspenso. Isso indica que ainda existe material se movimentando e que necessitamos continuar o monitoramento, juntamente com as outras equipes da rede de pesquisas (oceanografia física, ecotoxicologia, etc), para entender como esse material está se movimentando e impactando ecossistemas sensíveis, como os recifes esquecidos no Espírito Santo e no Banco de Abrolhos. Ainda não podemos falar de tendências a curto, médio e longo prazos. Nossa missão na sedimentologia e mineralogia é dar o feedback do comportamento deste material, em termos qualitativos e quantitativos, ao longo dos anos, nessas regiões (aumento / diminuição / estabilização).
Quais os próximos passos dessa pesquisa?
Professor Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel: Vamos manter nosso monitoramento até quando for possível, verificando a manutenção ou não das fases minerais encontradas e suas quantidades. Estamos também iniciando novas frentes de estudos, como das fases presentes nos colóides e seus comportamentos, através das pesquisas da Dra. Caroline Grillo e da Prof. Valéria Quaresma. Outra frente a ser desenvolvida é o estudo das fases possivelmente formadas em superfície, na pilha de rejeito (alguns dos minerais secundários) e usá-los, quem sabe, também como rastreadores.
As metodologias que estamos desenvolvendo também estão sendo testadas em outros locais. Aqui em Porto Seguro, por exemplo, estamos iniciando o trabalho de monitoramento das lamas do Rio Buranhém através dos parâmetros que usamos no Rio Doce, principalmente a susceptibilidade magnética.
A UFSB tem recursos humanos de excelência na Área de Ciências da Terra/Geociências. Somos dez professores no CFCAm, com formação em nível de graduação ou pós-graduação na área. Apesar de termos no momento apenas um curso de segundo ciclo (Oceanologia), temos um potencial enorme para crescer.
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