Pesquisadores abordam em artigo a relação entre diversidade de percepções de risco e a cooperação
A modelagem estatística de comportamentos sociais, método empregado em estudos da Sociofísica, ajuda a entender como determinados fenômenos acontecem, como a competição e a cooperação. Com computadores e os chamados toy models (um toy model é um modelo matemático usado em diversas áreas para simplificar uma realidade da natureza, permitindo que se aprenda sobre a matemática e os modelos abstratos para estudo, aprendizado e eventual aplicação em problemas reais, como o uso do modelo de epidemia zumbi aplicada ao estudo da disseminação de notícias falsas), pesquisadores buscam entender como determinadas escolhas são feitas a partir da combinação entre a matemática e as situações sociais, com determinante contribuição da Teoria dos Jogos. É a essa vertente interdisciplinar que se vincula a pesquisa descrita no artigo Heterogeneity in evolutionary games: an analysis of the risk perception, assinado pelos pesquisadores Marco Antônio Amaral (Campus Paulo Freire - UFSB) e Marco A. Javarone (University College London) e publicado na revista científica Proceedings of Royal Society A. O intuito das modelagens descritas no texto é saber se a diferença das percepções de risco e de recompensa é um fator que favorece o surgimento da cooperação em um dado grupo.
Para isso, os autores simularam grupos em que essa diferença de percepção de risco e recompensa, representada pela adesão a diferentes “jogos”, como o dilema do prisioneiro e a harmonia, está presente e evolui em um dado período. Conforme a escolha, um indivíduo pode ser altruísta e cooperar pela comunidade ou ser egoísta e buscar ganhos apenas para si. Em algumas dessas amostras, a matriz de resultados, que determina o que cada um pode ganhar ou perder de acordo com sua ação, foi alterada para verificar como as comunidades mudariam suas estratégias ao longo do tempo. Assim, os autores simularam três escalas de perturbações na matriz de resultados: em todas as comunidades, apenas nas comunidades homogêneas (onde só há ou altruístas ou egoístas) e apenas nas comunidades heterogêneas, que mesclam altruístas e egoístas.
Na figura, os quadrantes representam diferentes jogos sobre cooperação e competição:
harmonia (HG), jogo da galinha (SD), dilema do prisioneiro (PD) e caça ao cervo (SG).
Nas simulações, os pesquisadores também incluíram uma variável de irracionalidade, e consideraram que um indivíduo pode ou não influir com sua escolha na decisão de um vizinho, que por seu turno pode ou não mudar a sua adesão a um jogo, ou seja, preferir deixar de competir para ajudar o próximo a obter um “prêmio” maior.
O resultado reforçou a relação entre a diferença de percepções e o surgimento da cooperação, mas ressaltou que ainda é preciso mais pesquisas para entender bem alguns aspectos dessa relação, que é de difícil predição. Por exemplo, em comunidades homogêneas (nas quais as estratégias dos indivíduos são altruístas) o surgimento da cooperação após as alterações na matriz de resultados é mais intenso que quando a perturbação afeta todas as comunidades. Já nas comunidades heterogêneas, em que egoístas e altruístas convivem, a alteração na matriz de resultados inicia fomentando a competição e, após certo ponto, a cooperação surge e floresce.
O professor Marco Antônio Amaral, que mantém um blog em que divulga seus estudos na área da Sociofísica, explica a pesquisa e sua relevância em entrevista a seguir.
Conforme os resultados apontados, a diferença de percepção de risco, que é um atributo individual, entre indivíduos na comunidade, tem uma relação com o surgimento da cooperação, mas essa relação não é simples de predizer. Como isso pode ser explicado?
Marco Antônio Amaral: Exatamente. Acho que o ponto central aqui é notar o quão não-intuitivo esse resultado é. Claro, se nós fizéssemos um sistema em que todos percebessem o risco de cooperar com um valor, digamos 10, mas uma parcela da população tivesse a percepção de risco de cooperar menor, digamos 5, o resultado seria óbvio, a cooperação aumentaria. Isso porque nesse cenário hipotético estaríamos "ajudando" a cooperação de maneira forçada, isto é, estaríamos somente diminuindo a percepção de risco de cooperar de uma parcela da população. Com mais pessoas tendendo a cooperar, o esperado é que a cooperação global aumente. Porém nosso estudo utilizou perturbações simétricas, isto é, sempre que diminuíamos a percepção do risco de cooperar de um indivíduo, ao mesmo tempo aumentávamos na mesma medida essa percepção em outro. Em outras palavras, fizemos um modelo em que a perturbação média era zero, sempre que havia alguém mais favorável a cooperação, deveria haver alguém igualmente mais desfavorável.
Nesse sentido, o resultado obtido é totalmente não-intuitivo: a cooperação é estimulada mesmo que a diversidade seja simétrica. A explicação desse fenômeno foi difícil de ser entendida justamente por ele ser tão não-intuitivo. Mas de maneira resumida, o que vimos são correlações temporais de segunda ordem. Isto é, inicialmente você iria esperar que a cooperação não se alterasse, já que para cada pessoa "mais cooperativa", existira alguém "menos cooperativo". Até aí ok, e faz sentido. Porém, olhando a evolução da população ao longo do tempo, o que notamos é que uma pessoa "mais cooperativa" vai funcionar como uma semente de cooperação. Isto é, a pessoa "mais cooperativa" vai tender a influenciar seus vizinhos a se tornarem cooperadores, e com o tempo teremos um núcleo compacto de cooperadores que será muito resistente à invasão de desertores.
Porém, mesmo a perturbação sendo simétrica, esse efeito de longo prazo não surge entre desertores. Isto é, uma pessoa "mais egoísta" tenderá sim a se manter como traidora. Porém, as pessoas nos arredores desse desertor poderão imitar sua estratégia inicialmente, mas a longo prazo os ganhos dessa "ilha de desertores" será muito pequena. Em outras palavras, no longo prazo essa ilha de desertores se tornará instável, com um baixo retorno, e qualquer flutuação mínima fará com que eles progressivamente se tornem cooperadores, mesmo que a perturbação os faça ter uma percepção do risco de cooperar desfavorável à cooperação.
Em resumo, apesar das perturbações serem simétricas, cooperadores tem uma capacidade inerente de se beneficiarem de ciclos de autoalimentação positivos (feedback positivo), onde um cooperador mais fraternal gera outros cooperadores, que por sua vez melhoram os ganhos do cooperador inicial. Já desertores não tem tal capacidade, de modo que mesmo eles tendo uma vantagem localizada, o agrupamento de desertores não conseguirá manter tal vantagem a longo prazo.
Isso só mostra a robustez da cooperação em gerar ciclos autoalimentados positivos, de modo que cooperadores conseguem tirar vantagem de ambientes contendo diversidade enquanto desertores não.
Que exemplos podem ajudar a explicar a noção de perturbações na matriz de resultados, e como isso se traduziria em exemplos do cotidiano?
Marco Antônio Amaral: Essa é uma excelente pergunta! Nosso modelo tenta simplificar através de perturbações estocásticas no ganho dos jogadores um cenário cotidiano: a variação de recursos e estímulos. Pense assim, um dono de um Uno antigo e bem “acabado” vai ter uma percepção de risco ao manobrar numa vaga estreita muito diferente de um dono de BMW recém saída da loja. A situação é a mesma nos dois casos, mas um indivíduo terá muito mais medo de mínimo aranhão na lataria do que o outro. Da mesma forma, em um determinado emprego, um estagiário recém contratado terá muito mais medo de tomar uma decisão de risco do que um funcionário antigo da casa. O ponto é que diante da mesma situação geral, indivíduos terão uma grande gama de respostas devido a percepções diferentes quanto ao risco e recompensa.
Mas isso não se limita somente a decisões empresariais. A diversidade da percepção individual do risco/recompensa existe em centenas de casos. A confiança ao se negociar certas ações na bolsa de valores irá variar entre indivíduos de acordo com seu histórico mais recente de vitórias e derrotas. A agressividade entre animais (e mesmo humanos) ao tentar defender seu território irá depender da disponibilidade mais recente de alimentos e parceiros de cópula. Mesmo a percepção do ganho em uma negociação entre empresas irá variar até de acordo com o humor dos negociadores no dia, e um xingamento no trânsito, uma briga conjugal ou mesmo a nota baixa do filho na escola poderá influenciar profundamente a percepção de risco de um acionista da empresa. Não somos 100% racionais, e flutuações aleatórias do nosso cotidiano irão sempre gerar perturbações em como percebemos uma situação. Afinal, quem nunca tomou uma decisão de cabeça quente e horas depois ficou remoendo a situação, pensando que nunca teria tomado tal decisão em condições normais?
Essa pesquisa teve o foco de analisar justamente como essas flutuações aleatórias na percepção poderiam influenciar no desenvolvimento da cooperação. E a grande novidade é que justamente a flutuação simétrica de percepções tem o poder de aumentar a cooperação, quando comparada com a situação base sem flutuações.
Um dos resultados encontrados foi a contribuição, por assim dizer, do índice de irracionalidade para uma redução da cooperação. O que esse resultado permite apontar na relação com contextos reais?
Marco Antônio Amaral: Nos chegamos a falar um pouco da irracionalidade, mas na verdade isso foi feito com o intuito central de demostrar que as flutuações de percepção tem um resultado independente da irracionalidade. Digo isso porque o efeito que você citou da irracionalidade foi estudado inicialmente pelo Szabo em seu artigo. Mas de fato, esse é um ponto fascinante. Como você pode ver na figura 5, a cooperação apresenta um comportamento não-monótono com o valor da irracionalidade (k). Isto é, ao contrário do que esperamos, na verdade a irracionalidade pode ajudar ou piorar a cooperação. De fato, um cenário totalmente racional, k=0, iria levar à extinção da cooperação. Porém, um cenário totalmente irracional geraria a mesma coisa. Existe um valor ótimo de irracionalidde (o pico de cooperação da figura), onde a cooperação será máxima. De fato essa é uma questão fascinante e do ponto de vista evolutivo, ela inclusive aponta que muito possivelmente um nível mínimo de irracionalidade é desejável, e mesmo necessário, entre espécies para que a cooperação surja. Isso entra em contato direto com a psicologia evolutiva e outras áreas de biologia evolutiva, indicando justamente o caminho para que comportamentos irracionais possam surgir num contexto evolutivo.
Como os resultados encontrados ajudam a avançar o tema na área da Sociofísica?
Marco Antônio Amaral: Eu acredito que o ponto central foi mostrar que a diversidade promove a cooperação, dentro de um arcabouço matemático robusto. Sabemos disso empiricamente. Empresas (sérias) hoje em dia primam por contratar funcionários com diferentes backgrounds. Universidades têm políticas de diversidade tanto entre matrículas de alunos quanto de contratação de funcionários. Grupos de trabalho sabem que para um cenário mais eficiente, é necessário diversidade de pontos de vista e habilidades. Mas ainda mais profundamente, qualquer gestor financeiro sabe que um bom portfólio de ações deve ser diversificado, e não focado somente em um setor. Governos sabem que especialização de indústrias gera inevitavelmente profundas crises, e um setor diversificado é mais robusto. Biólogos sabem, há séculos, que um bioma variado é infinitamente mais robusto a pragas, oscilações climáticas e danos irreeversíveis do que um bioma altamente especializado e sem diversidade.
O que eu quero dizer é que a robustez que a diversidade traz não é um fenômeno único e pontual. É mais como um princípio geral. E como a vasta maioria dos padrões naturais, nos vemos esse princípio ocorrendo em diversas escalas e em diversos cenários no mundo. A mãe natureza é extremamente preguiçosa. Ela encontra um padrão que funciona e o repete no máximo de situações possíveis. É assim com a proporção áurea, é assim com diversos tipos de fractais, é assim com o princípio de minimização de energia. E vemos algo extremamente similar na robustez trazida pela diversidade.
Imagem de capa: truthseeker08 por Pixabay
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