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Lei de Cotas, 10 anos: uma análise de conjuntura

  • Escrito por Heleno Rocha Nazário
  • Publicado: Segunda, 29 de Agosto de 2022, 13h53
  • Última atualização em Quarta, 31 de Agosto de 2022, 13h01
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24082022 pró reitor sandro ferreira PROAF

A Lei de Cotas, enquanto política pública de impacto notável nas universidades federais, é também um objeto de estudo em tempo real à disposição dos pesquisadores de diferentes áreas afins ao tema das ações afirmativas. A Universidade Federal do Sul da Bahia vêm reunindo e preparando cientistas interessados nos desdobramentos da aplicação e dos aprimoramentos da Lei 12.711/2012. Dentre esse público especializado, o professor Sandro Augusto Ferreira ocupa uma posição interessante: é gestor da área responsável pela assistência estudantil e pelo acompanhamento das ações afirmativas, tema que é central em sua produção acadêmica. Pró-reitor de Ações Afirmativas (PROAF), ele atua na área desde a época em que a assistência estudantil ainda estava dentro da Pró-Reitoria de Sustentabilidade e Integração Social. Na UFSB, o professor Sandro atuou na discussão e no desenho das políticas afirmativas da universidade desde o início, agregando o olhar de estudioso ao trabalho da gestão.

A pedido da Assessoria de Comunicação Social, o pró-reitor Sandro Ferreira traça uma leitura do percurso feito até agora e discorre sobre o trabalho com ações afirmativas na instituição. O gestor e pesquisador também pondera sobre o futuro dessa legislação e os objetivos que a UFSB deve perseguir nessa área. 

 

Atualizado em 31/08/2022


 

ACS - Qual a sua leitura de conjuntura desses 10 anos de vigência da Lei de Cotas em um panorama nacional, enquanto pró-reitor de Ações Afirmativas e pesquisador do tema? 

Pró-Reitor Sandro Ferreira - Eu tenho partido do pressuposto de que a Lei de Cotas é, provavelmente, a maior política pública já promovida pelo Estado Brasileiro nos últimos anos. E por que a gente pode pensar que ela é uma política pública? É porque ela tem impacto direto em uma característica fundamental da formação social brasileira que é a herança da escravidão. O Brasil é um país que viveu sobre a escravidão por tanto tempo que ainda guarda marcas profundas desse processo na estrutura social, com efeitos na desigualdade, na exclusão, na violência. Portanto, uma política pública que busca amenizar os efeitos desse processo tende a ter um impacto social gigante. Então ela [Lei de Cotas] é mais do que apenas uma política universitária; é uma política pública com potencial de transformação de elementos da estrutura social brasileira.

Há também que levar em consideração que ela é parte de um processo importante de reforma da universidade brasileira, que em sua jovem história experimentou poucos processos de reforma nos quais houve um esforço do Estado em produzir medidas com potencial de repensar o próprio modelo de Universidade. O REUNI, que também foi uma proposta de reforma das IFES, está muito relacionado com os objetivos da Lei de Cotas. Então, ambas as medidas contribuíram para a ampliação e a interiorização de vagas, que produziram importantes mudanças no perfil do público que até então compunha essa universidade pública brasileira. Certamente a universidade que nós temos hoje é bastante diferente daquela que nós tínhamos há dez anos atrás, e isso está diretamente relacionado aos resultados da Lei de Cotas. Assim, é possível afirmar que esses dez anos já produziram importantes mudanças e conquistas para o público ao qual essa lei é voltada. Mas, por outro lado, há que se pensar que os efeitos de 300 anos de escravidão não serão corrigidos com apenas dez anos de vigência dessa política afirmativa.

Então, a minha leitura da conjuntura é de que, apesar das conquistas e dos resultados já obtidos (e possíveis de mensurar), ainda há profundas desigualdades na educação superior e, consequentemente, na sociedade brasileira; portanto, a gente precisa dar manutenção a essa lei por um longo tempo ainda, mas especialmente associando a ela outra estratégias, como, por exemplo, a uma política de permanência estudantil especialmente voltada aos segmentos que entram na universidade pela Lei de Cotas, assim como e também uma política de "pós-permanência", que vise fazer com que essa nova geração de graduados pela Lei de Cotas acesse o mercado de trabalho e os postos de poder. Isso nos leva não somente a defender a manutenção da atual, mas também defender outros tipos de ações afirmativas. Em resumo, é possível dizer que são dez anos de conquista mas que ainda estão longe de resolver a lacuna existente, e com isso promover a reparação e corrigir a desigualdade que foi imposta aos negros que foram escravizados no Brasil e aos seus descendentes. 

 

ACS - Ainda nesse olhar panorâmico, o que lhe parece que mudou para melhor com a aplicação e a reflexão sobre as ações afirmativas? E o que lhe parece que ainda precisa melhorar?

Pró-Reitor Sandro Ferreira - Bom, os efeitos da reserva de vagas precisam ser pensados para além desses últimos dez anos. Quando a lei é publicada em 2012, nós já tínhamos uma experiência marcante em algumas universidades de pelo menos mais de dez anos com políticas de cotas. Temos a experiência da UERJ, que é pioneira, e a própria experiência da UFBA, que se destaca pela influência direta no modelo adotado pela Lei de Cotas. Se a gente pegar essas universidades, sobretudo em áreas onde você tem uma presença significativa de populações negras, como na Bahia e no Rio de Janeiro, já é possível afirmar que a Lei de Cotas promoveu uma nova geração de universitários. Para começo de conversa, a universidade deixou de ser monocromática, ficando bem mais diversa e colorida. A universidade era caracterizada, ampla e hegemonicamente, pela presença de pessoas brancas, mesmo que em algumas universidades fosse possível percber (antes desse período de aplicação da Lei de Cotas) que em alguns cursos você já conseguia encontrar uma presença razoável de populações negras, pardas, periféricas, mas não na expressividade que se vê hoje na universidade.

A maior diversidade étnica na universidade é um resultado da Lei de Cotas, e junto com essa diversidade étnica você também começa a perceber uma diversidade cultural, uma diversidade epistemológica que, aos poucos, a universidade vai incorporando a partir da presença desses segmentos que demandam um espaço na universidade, e com isso disputam a própria universidade. Isso produziu transformações na universidade; então, é possível sim afirmar que a instituição mudou para melhor nessa direção. Ela é mais diversa, ela já consegue produzir conhecimento a partir das múltiplas experiências do nosso povo, coisa que antes não acontecia porque ela estava totalmente isolada numa redoma onde ela só conseguia se ver na classe média ou nas elites brasileiras.

Esta é uma primeira mudança, intra muros da universidade. Para fora dela é possível identificar uma geração da juventude negra, da juventude indígena, que - a partir das possibilidades que se abrem por uma formação universitária -  passou a ter mobilidade social por meio do ingresso no mercado de trabalho, de melhores salários, contribuindo com a construção simbólica da perspectiva de estar na universidade. Então, aquela característica comum nas famílias periféricas, de que ninguém tinha estado na universidade, passa a ser gradativamente alterada quando um membro dessa família consegue chegar à universidade, apoiado pela Lei de Cotas. E isso vai gerando um efeito em cadeia: aquele primeiro jovem da família que chega à universidade acaba estimulando outros jovens da própria família, ou mesmo acaba estimulando os seus pais a também estudar, e isso gera uma percepção de que a universidade passa a ser um horizonte, e as pessoas periférias passam a ter a universidade em seu horizonte.

São pessoas que não conseguiam acesso à universidade porque o próprio funil do vestibular produzia exclusão, no qual a própria taxa de inscrição do vestibular era proibitiva para essas populações. Você não via as pessoas buscarem a universidade porque era inclusive muito difícil passar no vestibular sem ter estudado em uma escola de qualidade, sem ter tido como fazer "cursinho", ou sem ter conseguido estudar na escola e com dedicação exclusiva, já que boa parte dessas populações precisava trabalhar e estudar à noite em condições muito precárias. Todos esses fatores acabam produzindo um desencanto dessa juventude com a universidade: qual a possibilidade de entrar? E de permanecer? Certamente, muitos desses, se tentassem, teriam até conseguido esse acesso, mas a própria noção de que aqueles espaços não eram espaços para eles acabaram afastando essas pessoas da própria representação, do seu lugar na universidade. Agora [Com a Lei de Cotas] eles passam a se ver na universidade, e a ver seus iguais, ainda que este seja um processo ainda em construção.

Você vai encontrar cursos em que a presença dessa população negra e indígena, de pessoas com deficiência ainda é pequena, mesmo com os efeitos da Lei de Cotas. O próprio processo de desvio que a elite aprendeu a fazer da Lei de Cotas - até que as bancas de heteroidentificação fossem criadas - contribui para que a presença negra em alguns cursos ainda seja pequena. É um processo em construção, mas é possível dizer que há mudanças; uma mudança econômica, uma mudança nas perspectivas de mobilidade social e uma mudança nas representações sociais dessas populações negras, indígenas, periféricas e de pessoas com deficiência, de que a universidade é um espaço acessível, é um espaço onde elas podem e devem estar e, uma vez estando ali, elas podem gerar transformações em suas vidas. É claro que, com as mudanças no mercado de trabalho, o fato de ter cursado o ensino superior não necessariamente garante espaço nesse mercado, mas é um instrumento fundamental para essa possibilidade.

Eu falava na pergunta anterior sobre a importância de se trabalhar mecanismos de permanência estudantil. Isso porque o fato de ingressar na universidade pelas cotas é muito significativo, mas a permanência na universidade é um desafio muito grande para essas populações. Para quem está na universidade pública há uma série de custos, de dedicação ao próprio processo de aprendizagem, de construção do conhecimento, no qual se espera que esse estudante consiga se dedicar, se possível, exclusivamente à universidade. E sem apoio à permanência, sem bolsa, sem residência universitária, sem restaurante universitário, essa dedicação fica muito dificultada para esses jovens oriundos desses segmentos.

Então, para mim, a principal melhoria que a Lei de Cotas precisa avançar, e há um debate em torno da possibilidade de revisar o texto vigente, aponta para o reforço da permanência estudantil, com a responsabilização do Estado para que envie recursos à permanência estudantil e, ao mesmo tempo, para a criação de mecanismos que façam com que essa política chegue também a outros segmentos que também estão excluídos da universidade. Necessário também que se criem mecanismos inclusive de proteção do direito do público a quem a Lei de Cotas se destina, já que ao longo desses dez anos houve tentativas das próprias elites de subverter as regras e fazer com que essas vagas não fossem ocupadas por quem de direito. Então, mecanismos de controle social, como as bancas de heteroidentificação, são também possibilidades que apontam para uma melhoria do instrumento das cotas, na perspectiva de que ela deve ainda permanecer mas garantindo que os seus efeitos sejam alcançados plenamente, fazendo assim com que esses primeiros resultados - que de fato já são possíveis de perceber - se consolidem e promovam transformações estruturais na sociedade brasileira. 





ACS - A respeito da revisão e da prorrogação da vigência da lei de Cotas, como o senhor considera que deve ser feita? Que cuidados são necessários?

Pró-Reitor Sandro Ferreira - A Lei de Cotas cria uma uma expectativa de que, após dez anos, ela passasse por um processo de análise dos seus resultados. Alguns confundem esse dispositivo enquanto uma data de encerramento da Lei de Cotas, o que na verdade não é o que está dito na lei. O que está dito é que após dez anos seria necessário avaliar os resultados obtidos. Isso implicaria possivelmente até na possibilidade de encerrar a experiência, caso os resultados esperados fossem totalmente alcançados. Até porque toda a política afirmativa, no seu sentido conceitual, tem uma expectativa de um fim em si mesmo; ela se pretende a corrigir uma determinada situação e, ao cumprir esse objetivo, deixar de ser necessária enquanto instrumento. Não é que a Lei de Cotas e as políticas afirmativas sejam eternas. Porém, para que elas deixam de ser necessárias, as transformações desejadas devem ser evidentes e significativas.

E como eu falava antes, é possível perceber mudanças na universidade, mas as expectativas de fato que a lei encerra, como por exemplo, produzir um processo de reparação das desigualdades educacionais e, consequentemente, das desigualdades econômicas que foram impostas como resultado da escravidão no Brasil, não vão ser resolvidas tão rapidamente. Então, é evidente a necessidade de prorrogação, porque não há nenhuma dúvida de que a estrutura social brasileira ainda não foi transformada a ponto de justificar o fim da Lei de Cotas. E mesmo se pensássemos que os objetivos da Lei de Cotas se restringem a alterar as porcentagens da presença de negros e não-negros na universidade - seguindo os dados da população no Brasil e suas regiões a partir dos dados do censo - até nesse aspecto é possível dizer que ainda estamos longe de alcançar os números reais, então isso impõe a necessidade da prorrogação.

Mesmo já partindo do pressuposto de que a prorrogação é uma necessidade, teria sido importante que o Estado brasileiro cumprisse a sua obrigação, sobretudo a partir da previsão que a própria lei aponta, de que deveria ter produzido pelo MEC, ao longo desses anos, um processo de avaliação da Lei de Cotas e de organização dos dados que ofertasse uma avaliação dos resultados, para que inclusive apontasse - e certamente apontaria - para a necessidade da manutenção, mas também apontasse para ajustes na aplicação da lei, para possíveis ampliações da Lei de Cotas. E isso não foi feito.

Então, o debate que hoje tem girado em torno dos dez anos da lei de cotas aponta claramente que os próximos dez anos precisam ser desenvolvidos a partir de uma observação científica cuidadosa do Estado, do MEC, das universidades e sobretudo da sociedade civil, acerca dos resultados obtidos. Isso sim vai possibilitar que a gente tenha uma apuração dos resultados e, consequentemente, nos permita avaliar o futuro da Lei de Cotas.

Há um projeto de lei que tramita hoje no Congresso que aponta para a defesa inconteste da renovação da Lei de Cotas por, pelo menos, mais 20 anos. E durante esses 20 anos nós teríamos quatro ciclos de avaliação dos resultados, feitos a partir de um sistema razoavelmente bem descrito na proposta, segundo a qual se fariam essas análises, municiando o próprio Estado, o próprio parlamento, para que 20 anos depois se pudesse avaliar os resultados e verificar a necessidade do encerramento da lei ou da manutenção pelo tempo a mais que seja preciso, a partir dos próprios dados. Então, é evidente a necessidade de manutenção da lei. Evidente também a necessidade de construir ajustes na Lei de Cotas para algumas limitações que são facilmente percebidas como, por exemplo, ausência de uma clareza sobre o papel da permanência; ausência de instrumentos de controle social; a própria definição de que o público da Lei de Cotas são as populações negras - e quando a gente fala de pardos e pretos falamos pessoas negras - evitando essa confusão de uma pessoa que se autodeclara parda sendo branca, crendo que teria direito à cota

Então os ajustes já deveriam ser feitos agora, e esse sistema de avaliação precisaria ser feito. É óbvio que a sociedade, sobretudo as universidades que aplicam e gerem a Lei de Cotas, deve estar atenta a esse debate para qualificação da lei e inclusive se mobilizando para evitar retrocessos, porque há interesse por parte de vários nisso.

Importa a contribuição das universidades para a qualificação da lei, tanto do ponto de vista de sua força de lei federal, quanto do ponto de vista da execução em cada universidade, já que elas gozam de razoável autonomia e podem ir além daquilo que apresenta a Lei de Cotas, promover ajustes locais às falhas e aos elementos descritos na própria lei. Essa seria a principal tarefa desse momento em que a gente está avaliando os dez anos do texto, que completa neste dia 29.

 

ACS - Passando a falar sobre a UFSB, como o sr. avalia o percurso institucional de aplicação e aperfeiçoamento dos processos de seleção no que tange às ações afirmativas, tanto as da Lei 12.711/2012 quanto as criadas pela universidade?

Pró-Reitor Sandro Ferreira - A UFSB tem uma grande vantagem histórica de ter surgido imbuída de um momento histórico brasileiro, no qual a sociedade passava por avanços importantes no campo da educação. Então, sendo ela uma nova universidade, resultado do processo de expansão, de interiorização e de reforma, que decorre do estímulo promovido pelo REUNI, ela acaba já nascendo com um olhar para esses instrumentos enquanto instrumentos prioritários na sua trajetória. A UFSB nasce com foco no papel do Enem enquanto instrumento de avaliação nacional, ela já nasce aderindo ao Sisu enquanto instrumento de acesso ampliado à possibilidade de ingressar na universidade e ela nasce sobretudo com a clara opção de aderir à Lei de Cotas. E aí é importante que se diga que, quando a Lei de Cotas foi criada e aprovada em 2012, ela previa um processo de execução que estabelecia que entre 2012 e 2016 as universidades deveriam chegar ao mínimo exigido pela lei, de 50% [de reserva de vagas para cotas] numa transição que iria de no mínimo 25% de cotas aplicadas já em 2012 até chegar aos 50% estabelecidos em lei em 2016. Muitas universidades inclusive fizeram uso desse interstício para aplicar integralmente a Lei de Cotas.

No caso da UFSB, em 2013, quando ela foi fundada, e as primeiras discussões internas são desenvolvidas para organizar o seu primeiro processo seletivo, ela já decide, lá em 2013, pensando no processo seletivo para 2014, que a adesão à Lei de Cotas seria plena; então não haveria o uso desse processo de etapas a cumprir, já se aplicou o estabelecido na Lei de Cotas, ainda que a obrigação dessa aplicação estava prevista para 2016. E mais do que isso: ao decidir daquela forma, ela também apontou naquele momento para a necessidade de ampliar para além de 50%, porque a Lei de Cotas é muito clara ao dizer que é no mínimo 50%. A UFSB avaliou que nós podemos e devemos, sobretudo pensando em nossa região e nos dados da nossa região, propor uma porcentagem maior de 50%, então vamos fazê-lo.

E nisso, nasce o primeiro processo seletivo da UFSB, com uma reserva de 55% das vagas para egressos de escola pública e as subdivisões internas previstas na própria Lei de Cotas nos cursos de bacharelado interdisciplinar, e de 85% de reserva para escola pública nos cursos de licenciatura interdisciplinar nos colégios universitários. Então ela já vai além do estabelecido na Lei de Cotas já em 2014, no seu primeiro processo seletivo, já é uma opção destacada da UFSB pelas ações afirmativas.

Também vale destacar o papel da política de Colégios Universitários, que também já nasce na UFSB com a sua implantação já em 2014, já que os Colégios Universitários são também entendidos como ações afirmativas, dado que eles se propõem a aproximar a universidade de comunidades mais isoladas da educação superior, comunidades marcadas por populações negras, indígenas e periféricas, e de egressos da escola pública. O próprio Colégio Universitário é entendido enquanto política de ação afirmativa. Então, a UFSB tem uma clara opção, desde o seu início, pelas ações afirmativas e pela ampla adesão à Lei de Cotas. Ao longo dos anos esse processo vai sendo qualificado, vai sendo ampliado, até que em 2017 a UFSB revisa seu sistema de cotas e estabelece em resolução e estabelece que a porcentagem dessa reserva passaria de 55% para 75%. Em 2018 a resolução é reformada, e aquela previsão original de fazer essa aplicação, essa ampliação da porcentagem dos cursos de Segundo Ciclo é estendida para os cursos de Primeiro Ciclo.

Houve também, naquele momento, uma espécie de organização das políticas afirmativas próprias da universidade, possibilidade prevista na própria Lei de Cotas, voltadas para segmentos específicos, que vão ser adotadas na UFSB a partir do instrumento das vagas supranumerárias. Então a UFSB fez uma ampliação muito clara e buscou adotar outras políticas ainda mais específicas para segmentos que iam além das pessoas negras (pretas e pardas), das pessoas indígenas e das pessoas com deficiência (nesse caso das pessoas com deficiência a partir de 2016, quando a Lei de Cotas é reformada para incluir esse segmento). Houve naquele momento uma busca da ampliação da política de ações afirmativas da UFSB, no primeiro momento para indígenas aldeados, depois para quilombolas e na sequência para pessoas trans, mais adiante para populações ciganas e mais recentemente (em 2021) para as pessoas egressas do sistema prisional, pessoas em privação de liberdade e refugiados, que é a política afirmativa da UFSB mais recente. 

 




ACS - Como é o desempenho acadêmico dos/as alunos/as cotistas na UFSB? Há algum estudo interno a respeito?

Pró-Reitor Sandro Ferreira - Nós temos uma percepção a partir de alguns dados, e eu particularmente desenvolvi um estudo em 2015 quando a primeira turma de ingressantes na UFSB havia completado o primeiro ciclo de um ano de formação, sobretudo dos alunos que eram egressos de colégios universitários, ou que estavam na Area Básica de Ingresso e nos bacharelados interdisciplinares. Naquele momento era possível perceber que o rendimento acadêmico desses alunos era muito semelhante [aos não-cotistas]. Às vezes, você tinha uma pequena variação favorável aos estudantes não-cotistas, ingressantes por ampla concorrência, que era de centésimos de nota. Então não era uma avaliação que sustentasse aquele argumento, que foi muito forte nos primeiros debates sobre a implementação de cotas no Brasil, de que estudantes cotistas têm rendimento acadêmico inferior ao de estudantes não-cotistas.

Os dados que a gente consegue identificar a partir de múltiplos estudos desenvolvidos pela própria comunidade acadêmica demonstram que o rendimento acadêmico não difere entre estudantes cotistas e não-cotistas. Algumas universidades têm estudos mais aprofundados que até apontam que, em alguns casos, o cotista consegue ter até um rendimento e um engajamento com a universidade maior do que o não-cotista -  o que prova que não há qualquer inferioridade do cotista quando ele ingressa pela cota; e que o instrumento da cota tem esse potencial simbólico, que ele tem essa lógica da reserva de vagas, mas muitas vezes a diferença que se estabelece no acesso do cotista para o não-cotista é muito pequena.

Isso também acaba se verificando dentro do rendimento acadêmico ao longo da universidade, mas também é possível dizer que alguns fatores impactam mais os cotistas que os não-cotistas. Por exemplo, o tempo de conclusão do curso: cotistas têm a possibilidade de ter de demorar um pouco mais tempo para fechar o curso, por conta das dificuldades específicas das pessoas mais pobres; então, têm de trabalhar o dia todo e isso acaba impactando na qualidade da adesão e da atenção à aula. Para fazer curso noturno em áreas mais distantes da universidade tem que depender de transporte, chegar atrasado e isso acaba impactando, o que nos leva a perceber que o apoio à permanência é fundamental para o sucesso da Lei de Cotas e para evitar essas pequenas desigualdades nas trajetórias entre cotista e não-cotista, que ainda é possível identificar. Mesmo que não haja diferença no rendimento, é possível dizer que há diferença nas trajetórias. Essas dificuldades específicas dos cotistas podem ser superadas a partir de uma política de permanência mais enfática para esse segmento.

Hoje a UFSB aplica uma política de permanência cuidadosa, que administra recursos muito pequenos dos PNAES [Programa Nacional de Assistência Estudantil], mas que tem buscado construir os instrumentos de apoio à permanência focalizados, atendendo as demandas que a gente consegue identificar como prioritárias e não só aquelas que são clássicas, como a demanda por moradia, alimentação e transporte. Mas nós ainda somos uma universidade que não tem restaurante universitário, e isso impacta na qualidade da promoção da permanência estudantil, sobretudo do segmento de estudantes cotistas. Ainda precisamos de estudos mais aprofundados acerca da trajetória dos cotistas na UFSB, do impacto desses no total de titulados, do problema da evasão entre cotistas e não-cotistas. A gente tem alguns dados específicos sobre indígenas, sobre quilombolas, mas não temos ainda um estudo local. Faltam recursos, instrumentos e servidores para desenvolver um estudo mais amplo que avalia os impactos e os resultados obtidos pela UFSB na sua política de ação afirmativa. 



ACS - A UFSB criou vagas supranumerárias para formar políticas afirmativas e atender públicos específicos, como as pessoas trans, povos ciganos. Que perspectivas se pode vislumbrar para a área de Ações Afirmativas da instituição para os próximos anos?

Pró-Reitor Sandro Ferreira - A gente conseguiu construir na UFSB, em pouco tempo, um processo de avaliação da sua própria política de ação afirmativa que é muito intenso. É importante destacar que o principal estopim de avaliação interna nasce com os próprios estudantes. O próprio debate interno sobre a relação entre primeiro e segundo ciclo estimulou os estudantes da universidade a debaterem o modelo de ações afirmativas da UFSB, o que acabou promovendo as mudanças nas resoluções. Tive a oportunidade de acompanhar, já como gestor a partir de 2018, fim de 2017, os ajustes de toda essa base normativa, mas as propostas principais que foram adotadas foram resultados desse primeiro processo. Então, a ampliação da porcentagem para 75% é bastante significativa, importante para a universidade e é fruto [da mobilização] dos estudantes; adoção da reserva de vagas para pessoas trans é fruto da intervenção dos estudantes e de outros pesquisadores da universidade.

Quando eu assumi a pró-reitoria e passei a trabalhar na análise dessa base normativa, o trabalho era ajustar a execução dessas políticas, alinhá-las à previsão da própria Lei de Cotas, e pensar inclusive as políticas de permanência para esse segmento. O processo foi muito qualificado e acabou levando também, nesse processo de revisão dos instrumentos, ao fortalecimento, à valorização e à mobilização de alguns órgãos que compõem os papéis importantes nesse debate qualificado. Pode se destacar, por exemplo, o papel da CPAF [Comissão de Políticas Afirmativas] - que é um órgão interno da PROAF - que cumpre um papel importante nos primeiros debates sobre a revisão das ações afirmativas da UFSB, e mais recentemente, do CAPC, o Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas, que também reúne um conjunto de pesquisadores, eu diria a massa crítica da universidade interessada no tema, para acompanhar e qualificar os instrumentos, qualificar e controlar as políticas por meio, por exemplo, das bancas de heteroidentificação.

Depois desse primeiro momento, houve a adoção das vagas supranumerárias para as populações ciganas, o que impôs à gente outras medidas para fazer valer essa reserva de vagas, e mais recentemente, a adoção da reserva de vagas para pessoa em privação de liberdade, pessoas egressas do sistema prisional (que é a primeira experiência no Brasil, já que nenhuma outra universidade pública brasileira tem política de ingresso por cotas a esse segmento) e pessoas refugiadas, que é um segmento que já tem experiências nas universidades brasileiras. Então, a gente conseguiu hoje construir uma política robusta, ousada, exemplo para muitas universidades e que inclusive oferece um forte laboratório para avaliar o peso das ações afirmativas. Só que, à medida que a gente qualifica essa política, o desafio vai aumentando: o desafio do acompanhamento, o desafio da avaliação dessas políticas adotadas, para que elas obtenham sucesso.

O que eu tenho percebido, e espero poder atuar na condição de gestor em diálogo com CAPC e os outros órgãos, é que a principal tarefa agora da UFSB, diante da sua política de ações afirmativas, é consolidar o que foi conquistado nos instrumentos normativos que foram criados. A gente conseguiu trazer para dentro do Estatuto da UFSB a previsão das Ações Afirmativas enquanto um princípio da universidade - uma característica também rara, poucas universidades trazem em seus estatutos referências explícitas ao papel das ações afirmativas. A gente conseguiu construir uma ótima resolução recentemente ajustada de ações afirmativas. Criamos uma resolução do comitê, que é o nosso instrumento de controle da política de controle social autônomo da política, e isso também exige ainda um esforço constante por parte da CAPC para qualificar os instrumentos, promover as bancas [de heteroidentificação], para fazer esse trabalho, que é extremamente importante e complexo, da melhor maneira possível. Então isso, para mim, é um desafio, tal qual o desafio da permanência de segmentos específicos, especialmente das populações trans, que ainda têm demandado da PROAF esforços contínuos na tentativa de criar políticas focadas nesse segmento.

Há o acompanhamento das pessoas com deficiência, que também é um desafio e que a gente depende ainda de estrutura, de equipe de servidores especializados para ampliar nossa capacidade de não só trazer esses alunos para dentro da universidade por meio das costas, mas também de apoiar a sua permanência. Agora temos o desafio do acompanhamento das pessoas privadas de liberdade, que temos os primeiros estudantes aprovados por essa cota, que também tem um desafio gigante no modelo de acompanhamento e de apoio à permanência. Além da valorização do segmento expressivo de estudantes indígenas e quilombolas, que provavelmente é nosso maior sucesso da política de Ações Afirmativas, em termos de números, mas que também demandam outras estratégias de atenção, de meios de apoio à permanência e de valorização dos seus saberes no cotidiano da universidade.

Temos as modalidades de cotas na graduação que se consolidam e queremos que se firmem na pós-graduação da UFSB. Há uma experiência muito positiva de aplicação de políticas de cotas na nossa pós-graduação, e agora eles devem em breve entrar nesse debate junto com a PROPPG [Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação] para criação de uma resolução que torne formalmente a política de ações afirmativas na pós-graduação enquanto instrumento legal, não dependendo apenas da vontade de cada programa de pós-graduação para a sua aplicação. Então, para o próximo período, esses são desafios: monitoramento e análise dos resultados obtidos até aqui para que a gente tenha aí mais de 20 anos para alcançar os objetivos centrais dessa política, que são a transformação da sociedade brasileira e o enfrentamento da desigualdade racial e da desigualdade educacional, para que sejam efetivamente superados com a contribuição dessa importante política pública. 

 

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