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Lei de Cotas, 10 anos: uma análise de conjuntura

  • Escrito por Heleno Rocha Nazário
  • Publicado: Segunda, 29 de Agosto de 2022, 13h53
  • Última atualização em Quarta, 31 de Agosto de 2022, 13h01
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24082022 pró reitor sandro ferreira PROAF

A Lei de Cotas, enquanto política pública de impacto notável nas universidades federais, é também um objeto de estudo em tempo real à disposição dos pesquisadores de diferentes áreas afins ao tema das ações afirmativas. A Universidade Federal do Sul da Bahia vêm reunindo e preparando cientistas interessados nos desdobramentos da aplicação e dos aprimoramentos da Lei 12.711/2012. Dentre esse público especializado, o professor Sandro Augusto Ferreira ocupa uma posição interessante: é gestor da área responsável pela assistência estudantil e pelo acompanhamento das ações afirmativas, tema que é central em sua produção acadêmica. Pró-reitor de Ações Afirmativas (PROAF), ele atua na área desde a época em que a assistência estudantil ainda estava dentro da Pró-Reitoria de Sustentabilidade e Integração Social. Na UFSB, o professor Sandro atuou na discussão e no desenho das políticas afirmativas da universidade desde o início, agregando o olhar de estudioso ao trabalho da gestão.

A pedido da Assessoria de Comunicação Social, o pró-reitor Sandro Ferreira traça uma leitura do percurso feito até agora e discorre sobre o trabalho com ações afirmativas na instituição. O gestor e pesquisador também pondera sobre o futuro dessa legislação e os objetivos que a UFSB deve perseguir nessa área. 

 

Atualizado em 31/08/2022


 

ACS - Qual a sua leitura de conjuntura desses 10 anos de vigência da Lei de Cotas em um panorama nacional, enquanto pró-reitor de Ações Afirmativas e pesquisador do tema? 

Pró-Reitor Sandro Ferreira - Eu tenho partido do pressuposto de que a Lei de Cotas é, provavelmente, a maior política pública já promovida pelo Estado Brasileiro nos últimos anos. E por que a gente pode pensar que ela é uma política pública? É porque ela tem impacto direto em uma característica fundamental da formação social brasileira que é a herança da escravidão. O Brasil é um país que viveu sobre a escravidão por tanto tempo que ainda guarda marcas profundas desse processo na estrutura social, com efeitos na desigualdade, na exclusão, na violência. Portanto, uma política pública que busca amenizar os efeitos desse processo tende a ter um impacto social gigante. Então ela [Lei de Cotas] é mais do que apenas uma política universitária; é uma política pública com potencial de transformação de elementos da estrutura social brasileira.

Há também que levar em consideração que ela é parte de um processo importante de reforma da universidade brasileira, que em sua jovem história experimentou poucos processos de reforma nos quais houve um esforço do Estado em produzir medidas com potencial de repensar o próprio modelo de Universidade. O REUNI, que também foi uma proposta de reforma das IFES, está muito relacionado com os objetivos da Lei de Cotas. Então, ambas as medidas contribuíram para a ampliação e a interiorização de vagas, que produziram importantes mudanças no perfil do público que até então compunha essa universidade pública brasileira. Certamente a universidade que nós temos hoje é bastante diferente daquela que nós tínhamos há dez anos atrás, e isso está diretamente relacionado aos resultados da Lei de Cotas. Assim, é possível afirmar que esses dez anos já produziram importantes mudanças e conquistas para o público ao qual essa lei é voltada. Mas, por outro lado, há que se pensar que os efeitos de 300 anos de escravidão não serão corrigidos com apenas dez anos de vigência dessa política afirmativa.

Então, a minha leitura da conjuntura é de que, apesar das conquistas e dos resultados já obtidos (e possíveis de mensurar), ainda há profundas desigualdades na educação superior e, consequentemente, na sociedade brasileira; portanto, a gente precisa dar manutenção a essa lei por um longo tempo ainda, mas especialmente associando a ela outra estratégias, como, por exemplo, a uma política de permanência estudantil especialmente voltada aos segmentos que entram na universidade pela Lei de Cotas, assim como e também uma política de "pós-permanência", que vise fazer com que essa nova geração de graduados pela Lei de Cotas acesse o mercado de trabalho e os postos de poder. Isso nos leva não somente a defender a manutenção da atual, mas também defender outros tipos de ações afirmativas. Em resumo, é possível dizer que são dez anos de conquista mas que ainda estão longe de resolver a lacuna existente, e com isso promover a reparação e corrigir a desigualdade que foi imposta aos negros que foram escravizados no Brasil e aos seus descendentes. 

 

ACS - Ainda nesse olhar panorâmico, o que lhe parece que mudou para melhor com a aplicação e a reflexão sobre as ações afirmativas? E o que lhe parece que ainda precisa melhorar?

Pró-Reitor Sandro Ferreira - Bom, os efeitos da reserva de vagas precisam ser pensados para além desses últimos dez anos. Quando a lei é publicada em 2012, nós já tínhamos uma experiência marcante em algumas universidades de pelo menos mais de dez anos com políticas de cotas. Temos a experiência da UERJ, que é pioneira, e a própria experiência da UFBA, que se destaca pela influência direta no modelo adotado pela Lei de Cotas. Se a gente pegar essas universidades, sobretudo em áreas onde você tem uma presença significativa de populações negras, como na Bahia e no Rio de Janeiro, já é possível afirmar que a Lei de Cotas promoveu uma nova geração de universitários. Para começo de conversa, a universidade deixou de ser monocromática, ficando bem mais diversa e colorida. A universidade era caracterizada, ampla e hegemonicamente, pela presença de pessoas brancas, mesmo que em algumas universidades fosse possível percber (antes desse período de aplicação da Lei de Cotas) que em alguns cursos você já conseguia encontrar uma presença razoável de populações negras, pardas, periféricas, mas não na expressividade que se vê hoje na universidade.

A maior diversidade étnica na universidade é um resultado da Lei de Cotas, e junto com essa diversidade étnica você também começa a perceber uma diversidade cultural, uma diversidade epistemológica que, aos poucos, a universidade vai incorporando a partir da presença desses segmentos que demandam um espaço na universidade, e com isso disputam a própria universidade. Isso produziu transformações na universidade; então, é possível sim afirmar que a instituição mudou para melhor nessa direção. Ela é mais diversa, ela já consegue produzir conhecimento a partir das múltiplas experiências do nosso povo, coisa que antes não acontecia porque ela estava totalmente isolada numa redoma onde ela só conseguia se ver na classe média ou nas elites brasileiras.

Esta é uma primeira mudança, intra muros da universidade. Para fora dela é possível identificar uma geração da juventude negra, da juventude indígena, que - a partir das possibilidades que se abrem por uma formação universitária -  passou a ter mobilidade social por meio do ingresso no mercado de trabalho, de melhores salários, contribuindo com a construção simbólica da perspectiva de estar na universidade. Então, aquela característica comum nas famílias periféricas, de que ninguém tinha estado na universidade, passa a ser gradativamente alterada quando um membro dessa família consegue chegar à universidade, apoiado pela Lei de Cotas. E isso vai gerando um efeito em cadeia: aquele primeiro jovem da família que chega à universidade acaba estimulando outros jovens da própria família, ou mesmo acaba estimulando os seus pais a também estudar, e isso gera uma percepção de que a universidade passa a ser um horizonte, e as pessoas periférias passam a ter a universidade em seu horizonte.

São pessoas que não conseguiam acesso à universidade porque o próprio funil do vestibular produzia exclusão, no qual a própria taxa de inscrição do vestibular era proibitiva para essas populações. Você não via as pessoas buscarem a universidade porque era inclusive muito difícil passar no vestibular sem ter estudado em uma escola de qualidade, sem ter tido como fazer "cursinho", ou sem ter conseguido estudar na escola e com dedicação exclusiva, já que boa parte dessas populações precisava trabalhar e estudar à noite em condições muito precárias. Todos esses fatores acabam produzindo um desencanto dessa juventude com a universidade: qual a possibilidade de entrar? E de permanecer? Certamente, muitos desses, se tentassem, teriam até conseguido esse acesso, mas a própria noção de que aqueles espaços não eram espaços para eles acabaram afastando essas pessoas da própria representação, do seu lugar na universidade. Agora [Com a Lei de Cotas] eles passam a se ver na universidade, e a ver seus iguais, ainda que este seja um processo ainda em construção.

Você vai encontrar cursos em que a presença dessa população negra e indígena, de pessoas com deficiência ainda é pequena, mesmo com os efeitos da Lei de Cotas. O próprio processo de desvio que a elite aprendeu a fazer da Lei de Cotas - até que as bancas de heteroidentificação fossem criadas - contribui para que a presença negra em alguns cursos ainda seja pequena. É um processo em construção, mas é possível dizer que há mudanças; uma mudança econômica, uma mudança nas perspectivas de mobilidade social e uma mudança nas representações sociais dessas populações negras, indígenas, periféricas e de pessoas com deficiência, de que a universidade é um espaço acessível, é um espaço onde elas podem e devem estar e, uma vez estando ali, elas podem gerar transformações em suas vidas. É claro que, com as mudanças no mercado de trabalho, o fato de ter cursado o ensino superior não necessariamente garante espaço nesse mercado, mas é um instrumento fundamental para essa possibilidade.

Eu falava na pergunta anterior sobre a importância de se trabalhar mecanismos de permanência estudantil. Isso porque o fato de ingressar na universidade pelas cotas é muito significativo, mas a permanência na universidade é um desafio muito grande para essas populações. Para quem está na universidade pública há uma série de custos, de dedicação ao próprio processo de aprendizagem, de construção do conhecimento, no qual se espera que esse estudante consiga se dedicar, se possível, exclusivamente à universidade. E sem apoio à permanência, sem bolsa, sem residência universitária, sem restaurante universitário, essa dedicação fica muito dificultada para esses jovens oriundos desses segmentos.

Então, para mim, a principal melhoria que a Lei de Cotas precisa avançar, e há um debate em torno da possibilidade de revisar o texto vigente, aponta para o reforço da permanência estudantil, com a responsabilização do Estado para que envie recursos à permanência estudantil e, ao mesmo tempo, para a criação de mecanismos que façam com que essa política chegue também a outros segmentos que também estão excluídos da universidade. Necessário também que se criem mecanismos inclusive de proteção do direito do público a quem a Lei de Cotas se destina, já que ao longo desses dez anos houve tentativas das próprias elites de subverter as regras e fazer com que essas vagas não fossem ocupadas por quem de direito. Então, mecanismos de controle social, como as bancas de heteroidentificação, são também possibilidades que apontam para uma melhoria do instrumento das cotas, na perspectiva de que ela deve ainda permanecer mas garantindo que os seus efeitos sejam alcançados plenamente, fazendo assim com que esses primeiros resultados - que de fato já são possíveis de perceber - se consolidem e promovam transformações estruturais na sociedade brasileira. 

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