As ações afirmativas e as novas escolhas para a concessão de honrarias acadêmicas
Os caminhos escolhidos pela UFSB para orientar seu modelo acadêmico passam pelas políticas públicas de ações afirmativas. O nascimento da UFSB em 2013 bebe dos processos de transformação que a universidade pública vivia com a publicação da Lei de Cotas para ingresso de estudantes (12.711/2012) e a Lei de Cotas no Serviço Público (12.990/2014).
Não à toa, o processo de definição das regras que organizam a concessão de títulos honoríficos também foi orientado por estes princípios, buscando por este mecanismo valorizar saberes que ainda hoje são pouco reconhecidos na concessão deste título na maioria das universidades.
Assim, a escolha de conceder o título de Dr. Honoris Causa a Mano Brown vai buscar exatamente se associar a esta opção em valorizar as ações afirmativas e dialogar com as “populações de jovens periféricos que encontram em sua música uma forma de se expressar e de se sentirem representados na densidade da sua poesia” como nos relatou em seu discurso a reitora Joana Angélica Guimarães da Luz, que na condição de primeira mulher negra a ser eleita reitora de uma universidade federal, é parte ativa desta transformação que vemos ocorrer nos espaços acadêmicos.
No uso de suas atribuições, no intuito de colocar as ações afirmativas no centro das decisões de nossa UFSB, replicamos abaixo a íntegra do discurso de nossa reitora, no dia 01 de novembro de 2023, na cerimônia de concessão do título de Doutor Honoris Causa a Pedro Paulo Soares Pereira, o Mano Brown.
Boa noite a todas as pessoas aqui presentes. Quero iniciar saudando o nosso homenageado Pedro Paulo Soares Pereira, Mano Brown. Faço aqui uma saudação especial aos membros do nosso Conselho Universitário. Saúdo as autoridades aqui presentes e agradeço pela presença, com uma saudação especial ao meu colega reitor da Universidade Federal do Pampa, que fez questão de se fazer presente, saindo dos rincões gaúchos. Saúdo também os membros da comunidade da UFSB, em especial àqueles que têm no movimento hip-hop uma forma de expressão artística e cultural mas principalmente política.
Quero fazer um agradecimento ao professor Richard Santos, por ter composto o memorial que foi submetido ao Conselho Universitário, e ao professor Francisco de Assis Nascimento, responsável pela bela relatoria do memorial, fazendo com que o Conselho Universitário da UFSB aprovasse por unanimidade a concessão do título
Pedro Paulo Soares Pereira, conhecido por todos como Mano Brown é, certamente, um dos artistas mais importantes da música popular brasileira em todos os tempos. A lista dos seus álbuns dá uma dimensão da sua inteligência poética. Ao passearmos pela obra do Grupo Racionais MC's, liderado por Mano Brown, percebemos a maturidade poética mas também não podemos deixar de sentir como um fio de navalha cortando a carne, em especial para aqueles que vivem a realidade apresentada de forma nua e crua nos seus versos.
Começando com Holocausto Urbano, que denuncia em suas letras o racismo e a miséria na periferia, marcada pela violência e pelo crime, passando pelo Escolha o Seu Caminho, Raio-X do Brasil, com a música Fim de Semana no Parque, que se transformou num verdadeiro hino nos bailes de rap; Sobrevivendo no Inferno, álbum que figurou na 14ª posição da lista dos 100 melhores discos da música brasileira pela Rolling Stone Brasil; Nada como um Dia Após o Outro Dia, eleito em uma lista da versão brasileira da revista Rolling Stone como o 88° melhor disco brasileiro de todos os tempos; Cores & Valores - eleito o melhor disco nacional de 2014 pela Rolling Stone Brasil. Poderia ficar horas discorrendo sobre sua obra e não seria suficiente, dada a dimensão e importância que tem para aqueles que conseguem, através dela, visualizar as pessoas tornadas invisíveis pela nossa sociedade.
Marcos Lacerda, no seu artigo A forma e a invenção na poética da canção de Mano Brown, diz: “Os Racionais representam o último grande acontecimento da cultura brasileira, na medida em que expressa a voz de trovão anticordial que coloca no primeiro plano da sua sofisticada poética a negatividade da experiência estética e política da sociedade brasileira”.
Ao darmos ao Mano Brown o título de Doutor Honoris Causa, estamos reconhecendo a importância que o seu trabalho, seu pensamento e sua produção artística tem na interlocução com a população jovem, em especial aquelas pessoas que nunca tiveram voz na nossa sociedade, populações de jovens periféricos que encontram em sua música uma forma de se expressar e de se sentirem representados na densidade da sua poesia. A universidade tem um histórico elitista em que a grande maioria das pessoas periféricas nunca se viram representadas, sempre foi um espaço reservado aos bem nascidos, aqui e acolá alguns de nós conseguiam furar a bolha e teimar em estar nesse espaço que não nos reconhecia.
Pela teimosia, pela organização e pelo trabalho de muitos inconformados com esta situação, vemos hoje uma mudança, ainda tímida. Mas essa mudança tem provocado uma reflexão sobre uma universidade aberta às muitas formas de saber. Percebemos que essa instituição milenar e fechada em si mesma não deveria ficar restrita aos meios acadêmicos e menos ainda ser feita exclusivamente pelos seus componentes. A perspectiva do olhar externo à universidade tem uma possibilidade muito grande de contribuição no sentido de entendermos o que essa instituição pode significar para a vida do país e do mundo em que vivemos. Talvez esse olhar externo possibilite mostrar-nos algo que não consigamos ver justamente, por estarmos muito envolvidos com os debates acadêmicos, com as pesquisas, com as disputas acadêmicas, por estarmos ensimesmados.
Ao longo do tempo às classes periféricas restou a escola de baixa qualidade, com séria limitação no processo de ensino-aprendizagem, fazendo com que os jovens oriundos dessas camadas da sociedade fossem considerados pessoas de baixa capacidade intelectual, uma vez que a eles não é permitido o acesso ao conhecimento de forma ampla e com a qualidade necessária para que possam ter um desenvolvimento escolar adequado para a competição existente nos vários espaços da nossa sociedade. Com essa lógica, o mundo do conhecimento os coloca numa posição de invisibilidade, não se dando ao trabalho de ouvi-los ou de falar para eles porque se considera que não entenderão ou não terão nenhuma capacidade de contribuir com o desenvolvimento do conhecimento. Ledo engano: ao terem a oportunidade de estar nesses espaços, essas pessoas mostram uma capacidade muitas vezes superior àqueles que sempre tiveram no espaço universitário o seu destino certo. Além disso, a chegada de muitos jovens periféricos nas nossas universidades criou um ambiente de riqueza intelectual diversa.
Ao concedermos o título de Dr. Honoris Causa a Mano Brown, nos abrimos para outras formas de linguagem, outras possibilidades de conhecimento, reconhecendo que não podemos andar sós.
Agradeço ao Sr. Pedro Paulo Soares por ter aceito essa homenagem que muito nos orgulha. Seja bem vindo agora como parte integrante da nossa comunidade.
Peço licença para citar um pequeno trecho de duas das suas canções:
Aqui estamos nós mais um dia
O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer.
Texto: PROAF
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