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Em livro, pesquisadora analisa o papel da universidade pública em relação à educação em prisões no Brasil

Escrito por Heleno Rocha Nazário | Publicado: Quarta, 04 de Outubro de 2023, 16h06 | Última atualização em Quarta, 04 de Outubro de 2023, 16h42 | Acessos: 1840

Imagem para as redes sociais 1O ensino como direito de todas as pessoas e, por conseguinte, também devido a quem está em privação de liberdade é o tema do livro Educação em prisões e universidades públicas no Brasil (Editora Appris, 2023). Assinado pela professora Carolina Bessa Ferreira de Oliveira, lotada no Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Sul da Bahia (CFCHS/UFSB), o livro parte de um estudo sobre as experiências brasileiras e argentinas na forma de conduzir iniciativas educacionais nos sistemas penitenciários, com um olhar voltado para apontar ideias e fomentar a discussão informada e baseada em evidências  científicas em torno de políticas públicas sobre o tema. 

A professora Carolina conta que a sua jornada na formação como profissional e pesquisadora, da graduação ao doutorado, a levou a estudar esse assunto: "O interesse no assunto nasceu sobretudo de minha prática profissional como educadora e gestora de educação em prisões nos estados de Minas Gerais e São Paulo, ao lado de pesquisa anterior realizada no mestrado na área de políticas públicas de educação básica em prisões, quando pude verificar de perto a avassaladora seletividade social e racial do sistema punitivo: a maior parte das pessoas que historicamente são encarceradas, mantidas na prisão e condenadas no Brasil não possuem escolarização básica completa, são negras, com reduzido ou ausente acesso à defesa no processo penal e vulneráveis socialmente. As evidências demonstram que a prisão acaba se constituindo como uma resposta racista aos conflitos sociais e como mais uma fronteira no acesso a direitos". 

A docente conta que a sua experiência como advogada na área criminal também influenciou a aproximação com o tema, pelo contato com histórias de vida de pessoas presas. Isso aumentou o seu interesse em investigar práticas de acesso a direitos sociais, incluindo a educação superior nas prisões. Carolina explica que o Brasil já oferta educação básica, na modalidade Educação de Jovens e Adultos, devendo cumprir as legislações vigentes - embora essa política alcance menos de 10% da população presa, sendo que a maioria possui escolarização básica incompleta. Em termos de ensino superior, o que existem são práticas isoladas nas prisões. "Com isso, passei a me inquietar com o que faz e o que pode fazer a universidade pública brasileira como instituição estatal em relação às prisões, para além das pesquisas já muito bem delineadas que temos sobre o tema. E o ensino? E a extensão? E a inclusão?", questiona.

 
Diferentes políticas de garantias do acesso ao ensino superior
 
A autora explica que a pesquisa de doutorado (concluída em 2017) que originou o livro não visava comparar experiências, mas ir a campo de forma exploratória para conhecer as instituições em que fosse possível o diálogo e a imersão e identificar as potencialidades, os formatos e os caminhos seguidos para a implantação de políticas dessa natureza. "Foi o caso das Universidades Nacional de Córdoba (UNC) e de Buenos Aires (UBA), na Argentina, cuja experiência com programas de educação superior nas prisões iniciaram há mais de 30 anos e o país possui atualmente, inclusive, uma modalidade de ensino específica (Educación en Contextos de Encierro), assim como experiências mais pontuais no Brasil como o campus avançado da UEPB em Campina Grande, construído no interior de um complexo prisional e iniciado com práticas extensionistas", relata a professora Carolina.  
 
imageAo conhecer as práticas nas instituições prisionais analisadas, a pesquisadora se deparou com processos históricos distintos no campo da política educacional e prisional, o que marcou profundamente as escolhas para a promoção do estudo no ensino superior como um direito das pessoas privadas de liberdade. "A experiência argentina remonta a um contexto e uma combinação de fatores políticos que confluiram para a experimentação e depois forte consolidação normativa e institucional da universidade na prisão, remontando à transição democrática, à punição de crimes cometidos na ditadura militar e ao acesso ao ensino superior de forma universalizante. Acordos e parcerias entre a universidade (no caso, a UBA, inicialmente) e a política penitenciária (Ministérios e Secretarias) possibilitaram uma divisão de atribuições e um esforço conjunto na oferta de ensino superior, em que docentes da universidade pública passaram a ministrar aulas em cursos superiores estruturados dentro de uma institucionalidade universitária em funcionamento no interior de unidades prisionais, para além do fato de ser um país cuja política de acesso ao ensino superior não inclui seleção e meritocracia da forma como conhecemos no Brasil", afirma a professora Carolina.
 
 
Ela explica ainda que as propostas analisadas na Argentina se caracterizam por ser pensadas para oferecer diferentes opções de ensino. "As experiências de oferta de um 'Ciclo básico comum' de ensino a estudantes inscritos na UBA, ao lado de oficinas regulares de extensão universitária para toda a população prisional também chamam atenção por proporcionar, desde o início da experiência da universidade na prisão na Argentina, como um leque de opções variado de atividades que fortalecem a oferta de ensino interdisciplinar, divulgam a universidade pública e articulam estudantes de dentro e fora da prisão. O Centro Universitário de Devoto, uma das unidades pesquisadas, se constituiu como um verdadeiro campus universitário dentro de uma unidade prisional, com salas de aula, laboratórios, espaços de convivência, biblioteca e regimento, incluindo-se 'internos residentes' em suas instalações. Ao progredir de pena e retomar a liberdade, o estudante pode dar continuidade ao curso na Universidade. O programa da UBA que institucionaliza a universidade na prisão é fortemente regulamentado pelo conselho universitário e possui uma estrutura dedicada ao seu funcionamento e organização, como diretoria, secretaria e coordenação. Paralelamente, estudantes presos atuam como colaboradores dos gestores e docentes da UBA que lá lecionam na organização interna à unidade, a exemplo de estagiários, além de bolsistas da própria universidade", explica Carolina, que afirma que a Argentina mantém uma modalidade de ensino própria para educação em prisões, com financiamento e uma estrutura de indução de políticas públicas que favorece essa construção pelas universidades.  
Educação como direito fundamental
 
professora carolina bessaA advogada, professora e pesquisadora afirma que a educação superior enquanto direito fundamental é a principal ideia defendida na obra e na pesquisa que a originou, para além da visão crítica sobre o conceito de ressocialização. "A privação de liberdade não pode significar a privação de todos os direitos, mas apenas do que é efetivamente alcançado pela sentença condenatória - sem contar que cerca de 40% das pessoas presas no Brasil estão aguardando julgamento (provisórias). De outra parte, 'ressocializar', 'reeducar' ou 'reintegrar' pressupõe uma lógica de 'tratamento penal' focado na ideia de 'pessoas desviantes', a qual a literatura crítica denomina 'ideologias RE' e que não corresponde à realidade altamente complexa e conflitiva da sociedade, ao fracasso histórico da instituição prisão como 'reabilitadora' ou cuja ação pode prevenir crimes, e nem mesmo com a seletividade racial e social hoje evidente em todos os indicadores de encarceramento no Brasil e no mundo. Entendendo que a definição de quem é a pessoa 'criminosa', dada a seletividade racial e social da punição, é um construto do sistema capitalista, nos aproximamos da perspectiva de que a prisão deve ser exceção como forma de punição e que a garantia de direitos fundamentais no seu interior é uma exigência legal à luz da nossa legislação democrática", declara a professora Carolina. Assim, afirma que não há mais discussão sobre o direito humano e fundamental à educação por parte das pessoas presas, mas sim a forma como podemos implementá-la. 
 
Assim, ela avalia que a universidade pública como ente estatal deve ser compreendida como um bem público e coletivo de acesso geral, incluindo as pessoas privadas de liberdade. Carolina prossegue afirmando que a proposta do livro se dá pelo encontro de pelo menos três suposições, sendo a primeira a de que o direito universal à educação é uma conquista social e não permite exclusões, estando esse direito garantido na legislação internacional e nacional também às pessoas presas, apesar de ser preciso reafirmá-lo face às implicações do seu exercício em um espaço fortemente marcado por violações de direitos e estigmas reproduzidos acriticamente.
 
Ela prossegue explicando que a próxima suposição é "a de que o encarceramento é seletivo racial e socialmente e deve ser debatido e combatido, pois é insustentável tomá-lo como principal resposta aos conflitos sociais-penais, de forma que nossa perspectiva é o desencarceramento, mas a garantia de direitos fundamentais dentro das prisões deve ocorrer independentemente de qualquer perspectiva; 3) e, ainda, a de que a universidade pública em sua autonomia e tripé constituinte (ensino, pesquisa e extensão) pode e deve promover ações e parcerias, respondendo aos objetivos marcados na própria legislação, mas também ao seu papel social, político, jurídico e pedagógico privilegiado. Nossa aposta é de que a extensão universitária é o eixo de maior potencialidade, considerando o ingresso via seleção nas universidades públicas brasileiras, ao lado da adoção de ações afirmativas voltadas a pessoas presas e egressas - o que passa pelo debate sobre o tema e compreensão crítica desse papel promotor de direitos fundamentais pela comunidade acadêmica". 
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