Em ensaio, docente analisa o 8 de janeiro a partir da ótica anti-racista
Os atos antidemocráticos ocorridos na Esplanada dos Ministérios em 8 de janeiro constituem um episódio recente da história política nacional. Por isso mesmo esses acontecimentos, comumente referidos desde então pela data, serão objeto de diferentes estudos, em busca da compreensão mais apurada sobre os fatos, seus motivos e consequências. Um dos esforços mais recentes é o ensaio Anti-racist perceptions about the 2023 anti-democratic acts in Brazil, publicado na revista Journal of Latin American Communication Research e assinado pelo professor Hamilton Richard Alexandrino Ferreira dos Santos (UFSB).
O autor parte da constatação de que, entre os dados oficiais da autoridades de segurança pública responsáveis pela detenção e identificação dos presos e as notícias que repercutiram o assunto, uma informação está consistente: a falta do perfilamento racial das pessoas detidas, em um país no qual a maior parte dos veículos de imprensa não hesita em apresentar essa informação nas páginas policiais. Considerando que o 8 de Janeiro não é uma ocorrência policial corriqueira, senão o ponto culminante de um processo atentatório contra a democracia brasileira, o professor Richard Santos articula as contribuições de pesquisadores como o senegalês Achille Mbembe, com os conceitos de "brutalismo" e "necropolítica", o sul-coreano Byung-chul Han com as noções de "psicopolítica" e o brasileiro Muniz Sodré, que apresenta as suas concepções sobre a "sociedade incivil" e o "turbocapitalismo", para tecer um panorama dos fatores que levam a essa "pasteurização racial", como ele designa o tratamento diferenciado na descrição dos participantes dos atos antidemocráticos perante a cotidiana desumanização da massa carcerária, em sua maioria preta e parda.
Para o professor Richard, o fato de não haver a descrição dos traços raciais dos presos por participar do 8 de Janeiro, nem nos registros oficiais nem nos noticiosos, não é uma mera coincidência, mas sim a evidência de um alinhamento editorial, embasado no imaginário social sobre brancos e "não-brancos" que facilita essa racionalização entre o criminoso e o "vândalo" pelo tom da pele.
"Fazendo um esforço maior, alguns [veículos] classificaram como terroristas à brasileira. Mas nenhum tratamento, nenhuma forma relacionada àqueles que furtam um macarrão instantâneo, que são alvos da bala perdida, que são considerados sub-humanos, que são despidos de sua dignidade diariamente nos folhetins jornalísticos diários. Essa é a própria tradução da branquitude que trago em meu livro “Branquitude e televisão”, e avanço sobre o tema informando que é um modo colonizado de ser balizado pelo imperialismo cultural que cerca a indústria das imagens no Brasil e na América Latina como um todo. Trato disso neste meu livro mais recente, Mídia, colonialismo e Imperialismo Cultural - O caso comparado da TV pública no Brasil e na Argentina", destaca Richard.
"Gosto de olhar para e à partir da TV pública local e dos países, pois creio que numa democracia de alta intensidade a comunicação pública deve ser o balizador do acesso à informação democrática. Não estando bem a comunicação pública, em especial a rádio e TV pública, nenhum outro meio privado estará. Não suprem as necessidades de formação cidadã, por isso essa análise 'a quente' dos atos de 08 de janeiro e a relação com a emissão de signos dos canais de informação."
A falta da racialização dos presos pelos atos antidemocráticos, em um período do Brasil no qual coexistem as cotas raciais em universidades e concursos e o noticiário policialesco, é em si uma racialização, aponta o professor Richard. "Porém, como de maioria branca, a racialização branca no Brasil é silenciada, porque nasce de uma dominação e construção silenciada pela verborragia e violência da racialização do outro não-branco. No caso em tela, falo das pessoas negras. A negritude é histórica e politicamente visibilizada de modo negativo, pelos brancos dominantes, construindo assim um signo de não-ser, de não-lugar, de não direitos. O contrário da dominação branca, de brancos nem tão brancos assim, que para negativar o não igual também precisam entrar no contexto da racialização, porém, sublimados por uma positividade do signo racial. Isso tem raiz histórica, da invasão da África subsaariana, passando pela reconquista da península ibérica à invasão das américas a partir de 1492", avalia.
Na conexão entre Han, Mbembe e Sodré, o texto aponta para uma tendência social, econômica e política de aceleração das desigualdades de renda, de cidadania e de dignidade humana como contribuintes para o estado atual de coisas, de modo que as tecnologias neoliberais de mediação social se tornam ferramentas de poder, as emoções e os estereótipos se alçam acima da razão e encobrem o jogo real. Há, também com base nos autores, pistas para possíveis soluções. O professor Richard, a pedido, avança as possibilidades que vislumbra: "Penso que exista algum caminho sim, e gostaria de chamar para exemplo de caminho o que apontou Milton Santos, um autor que desde e/ou antes do início do século XXI têm tratado da aceleração do que ele cunhou como 'meio-técnico-científico-informacional', caracterizado pelo advento das tecnologias oriundas especialmente da terceira fase da industrialização mundial. Um momento da geopolítica humana influenciada principalmente pela globalização e/ou euro-americanização do planeta, e marcado pelo hiperdesenvolvimento da técnica e da ciência. Uma época de dominação estadunidense e encoberto pelo ocidente europeu, na qual vimos o que Muniz Sodré chama de turbocapitalismo transformar as vidas humanas em nada em favor do capital.
Deste modo, ainda acredito que uma globalização feita pelos de cá, entre os do Sul, que não secunde os interesses das potências imperialistas seria um caminho plausível para a desastrosa realidade a que estamos inseridos. Temos alguns exemplos plausíveis de serem fortalecidos. É ver o debate que o Presidente Lula tem provocado no MERCOSUL junto à União Europeia que nos propunha um acordo draconiano e subalternizador a seus interesses; é investigar a potencialidade da “nova rota da seda” que a China tem apresentado aos países do Sul, em especial aos que formam os BRICS; é avançar com a desconstrução do dólar como moeda corrente para transações internacionais e investir em outras possibilidades comuns para países “comuns”; é reorganizar o Conselho de Segurança da ONU, com a mesma formação desde o fim da guerra europeia em 1945. Enfim, poderíamos começar reorganizando nosso espaço regulamentando os meios de comunicação, revendo as relações do Banco Central com o mercado financeiro internacional e caminhando para uma verdadeira descolonização do país, incompleta desde 1822, secundada em 1823 pelos baianos no Dois de Julho. Contudo, com o artigo apresentado, com as respostas dadas e com os caminhos propostos na última pergunta, quero afirmar que acredito que ainda somos uma colônia e precisamos nos descolonizar."
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