Em livro, pesquisadora propõe inclusão do constitucionalismo haitiano no ensino de Direito Constitucional
Uma experiência política e jurídica de relevo nas Américas, a formação da teoria constitucional haitiana é uma perfeita desconhecida na teoria constitucional brasileira. O fato que se percebe no Direito decorre de fundamentações filosóficas, decisões políticas e culturais que remontam a séculos de existência de um racismo voltado para a justificação e a submissão dos africanos aos projetos ocidentais e que estão entre os alicerces da experiência capitalista. Os processos históricos que fizeram com que a primeira república formada por pessoas escravizadas nas Américas a obter sua independência da metrópole tenha sido desconsiderada nos estudos sobre constitucionalismo na área do Direito, bem como os contributos possíveis para a teoria, são descritos no livro da professora Maria do Carmo Rebouças dos Santos, que leciona e pesquisa no Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Sul da Bahia (CFCHS/UFSB). Intitulada Constitucionalismo e Justiça Epistêmica: o lugar do movimento constitucionalista haitiano de 1801 e 1805, a obra integra a coleção Pensamento Negro Contemporâneo, publicada pela editora Telha, com o prefácio do professor Kabenguele Munanga e apresentação pela professora Lidyane Ferreira (UFSB). A coleção é coordenada pela professora Maria do Carmo e o professor Richard Santos (UFSB)
A pesquisa bibliográfica, documental e normativa sobre a Revolução Haitiana de 1791 e sobre as duas constituições aprovadas nesse período, a de 1801 e 1804, embasam a obra, que conta com lançamento para o público haitiano marcado para quarta-feira (16). Conforme a professora Maria do Carmo, o tema do constitucionalismo haitiano foi estudado no âmbito dos estudos que desenvolve no campo do Direito Constitucional, componente curricular que leciona na UFSB, bem como das investigações do Grupo de Pesquisa Usos Emancipatórios do Direito, no qual ela coordena a linha de pesquisa Estudos Contemporâneos do Direito Constitucional. Ela explica que ambas as atuações estão "ancoradas em um pensamento crítico e insurgente que reclama pela visibilidade do movimentos constitucionais e de suas teorias explicativas decorrentes das experiências dos sujeitos coletivos historicamente marginalizados, silenciados".
A professora Maria do Carmo já pôde apresentar informações a respeito da pesquisa em lives acadêmicas, como a do ciclo de debates Controvérsias NUPERGS: "Diversidade, Reconhecimento e Justiça", do PPG em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e no curso de Direito da UCSal. O livro também foi tema de um artigo no jornal Correio Braziliense. Um dos objetivos é contribuir para o ensino de Direito Constitucional ao propor que a experiência haitiana seja também estudada, em um movimento de rompimento com o eurocentrismo e enriquecimento do conhecimento sobre formulações constitucionais enquanto contratos sociais de âmbito nacional por populações negras diaspóricas. Assim, a autora entende que o livro importa "na medida em que primeiro questiona a matriz eurocêntrica do ensino do Direito Constitucional no Brasil e ao mesmo tempo apresenta uma pesquisa sobre o Movimento Constitucional Haitiano de 1801 e 1804, com análise sobre esses dois adventos constitucionais".
O ponto central é propor o constitucionalismo haitiano como um advento válido de ser considerado nos estudos contemporâneos sobre constitucionalismo moderno e as teorias que o sustentam, corrigindo a injustiça epistêmica que foi o apagamento dessa contribuição por razões eurocêntricas da história e da filosofia do constitucionalismo, afirma a pesquisadora. Os eventos históricos da libertação haitiana e da formulação de leis próprias para sua existência como nação, explica Maria do Carmo, marca a independência da metrópole e a ascensão da população negra como cidadã de pleno direito. "O país que hoje conhecemos como Haiti foi a primeira colônia das Américas, então conhecida como São Domingos, a conquistar a sua independência da metrópole francesa por meio de uma revolução protagonizada por africanos e africanas escravizados e seus descendentes. A revolução haitiana ocorrida entre 1791 e 1804 forjou no mundo colonial a criação do primeiro Estado moderno e a primeira ideia de constituição tal como a reconhecemos hoje, por meio da agência de pessoas ex-escravizadas, que teve como cerne a abolição da escravidão, das hierarquias raciais e a independência colonial, tudo isso materializado em duas constituições aprovadas em 1801 e 1805", ensina.
A recuperação histórica não se resume ao relato da trama revolucionária. A professora Maria do Carmo também elucida os fundamentos e os processos de longa duração que colocaram como verdade centrada no branco europeu a infame tese da inferioridade moral e intelectual indicada pela cor da pele. É o racismo visto como fenômeno histórico, construído no tempo para justificar agressões e exploração de pessoas e, em paralelo, negar a validade e a existência das contribuições de africanos e seus descendentes nos diversos campos da experiência humana - como no Direito Constitucional. "Ao mesmo tempo, eu questiono o cânone do direito constitucional sobre o apagamento do desenho de outras ordens constitucionais nesse campo de estudos, no período moderno, não para rasurar ou descartar o cânone e a produção ocidental, mas para desvelar a racialidade do discurso da modernidade jurídica constitucional, para advertir sobre uma injustiça que é de ordem epistêmica, quando o Direito confere efeitos de generalidade e abstração a experiencias concretas como a do constitucionalismo francês e estadunidense e não utiliza do mesmo suposto rigor com a experiência haitiana", define Maria do Carmo.
O título do livro clama pela correção da injustiça epistêmica que é o apagamento do movimento constitucionalista haitiano no campo do Direito Constitucional brasileiro, no qual "prevalece até os dias de hoje um silêncio ensurdecedor a respeito da experiência histórica da revolução ocorrida na colônia francesa de São Domingos, protagonizada por escravizados e escravizadas africanos e seus descendentes em 1791, que deu início ao constitucionalismo haitiano no início do século XIX", conta a professora. Ela explica que o tema está aos poucos e recentemente sendo resgatado e proposto pelo trabalho de pesquisadores dedicados.
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